quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

HÁ QUEM DIGA


A7 Dm C
Há quem diga que eu dormi de touca
Bb A7
Que eu perdi a boca, que eu fugi da briga
Gm Dm7
Que eu caí do galho e que não vi saída
E7 A7
Que eu morri de medo quando o pau quebrou

Dm7 C
Há quem diga que eu não sei de nada
Bb A7
Que eu não sou de nada e não peço desculpas
Gm Dm7
Que eu não tenho culpa, mas que eu dei bobeira
E7 A7
E que Durango Kid quase me pegou

Eu, por mim, queria isso e aquilo
Um quilo mais daquilo, um grilo menos nisso
É disso que eu preciso ou não é nada disso
Eu quero é todo mundo nesse carnaval

Dm7 C
Eu quero é botar meu bloco na rua
Bb A7
Brincar, botar pra gemer
Dm7 C
Eu quero é botar meu bloco na rua
Bb A7
Gingar pra dar e vender


(Sérgio Sampaio - 'Eu quero é botar meu bloco na rua')


.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

OUVIR, CONTEMPLAR E MEDITAR


Dirijo-me a todos os seres sencientes.

Todos aqueles que sentem, independente de serem - ou do quanto sejam - conscientes.


Uma vez eu li uma coisa simples:

"A quem os deuses mundanos podem ajudar, se eles mesmos estão confinados na prisão do samsara? Assim, quando você procurar ajuda, tomar o refúgio genuíno nas Três Jóias é a prática de um bodhisattva".

Pode parecer complicado, mas vou destrinchar parte por parte.

Deuses mundanos são santos, semideuses, guerreiros alçados ao patamar do divino etc.

Imagine uma coisa: em todo conflito que se trave entre pessoas, há sempre interesses sendo defendidos de ambos os lados. Lados que existem, que surgiram no mundo ao mesmo tempo e cuja existência não está relacionada à dos demais. Prova disso é que ambos os lados nasceram e estão aí.

Para o equilíbrio de todas as coisas, não faz diferença que estejam ambos aí. Logo, todos esses aparentes conflitos poderiam se dar em escalas mais tranqüilas, se ambos os lados tivessem a consciência da existência e da legitimidade do outro.

A guerra é o esgotamento dos recursos diplomáticos. Encará-la como algo nobre é escolha das pessoas. Não há nada de nobre em, em nome de se preservar a existência de um, eliminar a existência de outro. Não foi nenhum governo ou exército que te trouxe à vida e não cabe a nenhum desses agentes o direito de tirá-la.

Pensando assim, que valor haverá em um guerreiro? Que valor haverá em um guerreiro, algum valor que o coloque acima das limitações e das paixões humanas?

Não haverá. Portanto, recorrer a um guerreiro para solucionar seus problemas internos será insistir no erro de acreditar que o problema é externo.

A chamada prisão do samsara é nada além dos efeitos repetitivos das ações repetitivas do homem. Eliminando-se qualquer misticismo da sabedoria oriental, fica claro que estamos constantemente sofrendo os efeitos dos erros que repetimos ad nauseum. Quando o hinduísmo fala em romper com ciclos, é realmente a isso que se refere. Um guerreiro eterno, por exemplo, estará para sempre condenado a combater aqueles que sentem os efeitos de sua espada.

Estará ocupado o suficiente com isso.


As três jóias de um bodhisattva são:

.ouvir;
.contemplar;
.meditar.

Um bodhisattva é, literalmente, um ser de sabedoria. É alguém que se dedica a conhecer e, a partir do que reúne, passar adiante ao resto das pessoas, a fim de elevar o nível geral do planeta.

Existem trintessete práticas para um bodhisattva.

Transmito-as aqui abertamente. Como dizia nosso querido J.C., algumas sementes caem sobre rocha, mas outras caem sobre solo fértil.


Não preciso ser nada especial para me julgar no direito de dizer:

nós, que não vemos beleza no sofrimento, precisamos de toda ajuda possível.


[1] Tendo obtido o livre e bem favorecido nascimento humano,
Tão difícil de vir e tão poderoso,
Perseverando firmemente, noite e dia,
Para liberar a si e aos outros do oceano do samsara —
Ouvir, contemplar e meditar
É a prática de um bodhisattva.

[2] Diante dos amigos, apego como água turbulenta;
Diante dos inimigos, ódio como o fogo raivoso;
Obscurecidos pela ignorância, esquecemos o que deve
E o que não deve ser feito —
Deixar para trás a terra natal
É a prática de um bodhisattva.

[3] Quando as más circunstâncias são deixadas para trás,
As emoções e crenças obscuras diminuem gradualmente.
Sem distrações, a persistência diante da virtude aumenta naturalmente.
À medida que a consciência se esclarece, surge a certeza no Dharma —
Passar o tempo em solidão
É a prática de um bodhisattva.

[4] Durante a morte, a consciência visitante deixa o corpo para trás,
Como um hóspede deixando uma pensão,
Deixando para trás as pessoas amadas com quem ficamos por muito tempo,
Deixando para trás a riqueza ganha através do esforço.
Assim, abandonar as preocupações desta vida
É a prática de um bodhisattva.

[5] As pessoas com quem você está,
Que aumentam os três venenos,
Que enfraquecem as práticas do ouvir, contemplar e meditar,
Que minam a bondade amorosa e a compaixão —
Abandonar as más amizades
É a prática de um bodhisattva.

[6] Aqueles de quem você depende, que colocam fim aos vícios,
Que fazem aumentar as boas qualidades, como a lua crescente —
Manter estes amigos espirituais
Como sendo mais preciosos
Do que o seu próprio corpo
É a prática de um bodhisattva.

[7] A quem os deuses mundanos podem ajudar
Se eles mesmos estão confinados na prisão do samsara?
Assim, quando você procurar ajuda,
Tomar o refúgio genuíno nas Três Jóias
É a prática de um bodhisattva.

[8] O Buddha disse,
"O resultado das ações negativas
É o sofrimento dos reinos inferiores, tão difícil de suportar."
Portanto, não cometer atos ruins
Mesmo ao custo da própria vida
É a prática de um bodhisattva.

[9] A felicidade dos três mundos
É como o orvalho sobre uma folha de grama,
Que desaparece em um instante.
Esforçar-se pelo estado supremo —
A liberação que nunca muda —
É a prática de um bodhisattva.

[10] De que adianta a felicidade pessoal
Se cada mãe, que foi tão afetuosa com você
Desde um tempo sem início, está sofrendo?
Assim, para liberar um infinito número de seres sencientes,
Gerar a mente da iluminação
É a prática de um bodhisattva.

[11] Sem exceção, todo sofrimento vem
De querer felicidade apenas para si mesmo;
Os buddhas perfeitos são nascidos da aspiração de beneficiar os outros.
Assim, trocar verdadeiramente a própria felicidade
Pelo sofrimento dos outros
É a prática de um bodhisattva.

[12] Mesmo se alguém de grande cobiça
Roubar toda a sua riqueza, ou se alguém a roubou,
Dedicar ao ladrão o seu corpo,
Suas alegrias e seu mérito —
Passados, presentes e futuros —
É a prática de um bodhisattva.

[13] Mesmo se alguém cortar fora a sua cabeça,
Sem você nada ter feito de errado,
Tomar as negatividades daquela pessoa
Através do poder da compaixão
É a prática de um bodhisattva.

[14] Mesmo se alguém difamá-lo
Pela extensão de um bilhão de universos,
Falar das boas qualidades daquela pessoa
Com uma mente cuidadosa
É a prática de um bodhisattva.

[15] Mesmo se alguém insultá-lo no meio de uma multidão,
Apontando suas falhas escondidas —
Reverenciá-lo respeitosamente,
Vendo aquela pessoa como um amigo espiritual,
É a prática de um bodhisattva.

[16] Mesmo se alguém que você cuidou
Como se fosse o seu próprio filho
Considerá-lo como um inimigo —
Ser especialmente afetivo diante dele,
Como uma mãe cujo filho está doente,
É a prática de um bodhisattva.

[17] Mesmo se alguém, igual ou inferior a você,
Tratá-lo com desprezo e arrogância —
Colocá-lo respeitosamente acima de você,
Como você faria com seu professor,
É a prática de um bodhisattva.

[18] Mesmo que você esteja sem dinheiro,
Desprezado continuamente pelos homens,
Terrivelmente doente, golpeado pelas forças maléficas —
Tomar para si mesmo todos os atos ruins
E sofrimentos dos outros, sem perder a afeição,
É a prática de um bodhisattva.

[19] Mesmo sendo bem conhecido e respeitado,
Tão rico quanto Vaishravana —
Tendo visto que a riqueza e glória mundanas são sem essência,
Estar livre da arrogância
É a prática de um bodhisattva.

[20] Enquanto o inimigo interior, o próprio ódio, permanecer descontrolado,
Tentar subjugar os inimigos externos fará apenas aumentá-los ainda mais.
Portanto, domar o próprio fluxo mental
Com as forças da bondade amorosa e da compaixão
É a prática de um bodhisattva.

[21] O desejo é como beber água salgada —
Quanto mais você deixa, mais o apego aumenta.
Deixar ir imediatamente tudo o que faz surgir o apego
É prática de um bodhisattva.

[22] Os fenômenos aparentes, todos eles,
São fabricações da mente;
A natureza inata da mente
É separada das fabricações da mente.
Tendo visto isso, não se envolver com a percepção dualista
Ao ver coisas belas,
[23] Abster-se do apego ao ver os objetos
Como sendo tão amáveis e irreais
Quanto os arco-íris de verão,
É a prática de um bodhisattva.

[24] Tomar as aparências ilusórias como sendo reais
É tão exaustivo quanto ver a morte do próprio filho em um sonho —
Nossos muitos sofrimentos são assim.
Deste modo, considerando como fantasias
Os acontecimentos não desejados da vida,
[25] Aqueles que querem a iluminação
Devem dar seus próprios corpos se for necessário,
Sem falar também da doação de coisas externas.
Dar generosamente — sem esperança ou recompensa,
E sem o desejo de resultados —
É a prática de um bodhisattva.

[26] Sem ética, você não poderá alcançar benefício nem mesmo para si;
Então, querer beneficiar os outros será apenas uma piada.
Portanto, manter a ética que é livre de apego a este mundo
É a prática de um bodhisattva.

[27] Tudo o que é danoso é como um tesouro de jóias
Para o bodhisattva, que deseja os prazeres da virtude.
Assim, cultivar a paciência sem ódio ou ressentimento,
Diante de qualquer um,
É a prática de um bodhisattva.

[28] Apesar dos ouvintes e realizadores solitários
Realizarem benefício para si mesmos,
Eles se esforçam como se colocassem fogo em seus cabelos.
Fazer esforços dos quais nascem
As boas qualidades que beneficiam a todos os seres
É a prática de um bodhisattva.

[29] As emoções e crenças obscuras
São completamente conquistadas pela meditação analítica,
Que foi totalmente integrada com a meditação estabilizadora.
Compreendendo isto, praticar estados meditativos estáveis,
Além dos quatro estados de absorção mental do reino sem forma,
É a prática de um bodhisattva.

[30] Já que a iluminação perfeita não pode ser obtida
Apenas com cinco perfeições, sem sabedoria,
Cultivar a sabedoria que é livre dos conceitos,
Possuidora da pureza tríplice e dos meios hábeis,
É a prática de um bodhisattva.

[31] Se você não examinar sua confusão,
Você pode se tornar um charlatão
Disfarçado como um praticante de Dharma.
Portanto, sempre examinar a própria confusão
E então deixá-la para trás
É a prática de um bodhisattva.

[32] Devido à força das emoções e crenças obscurecidas,
Falar das falhas dos bodhisattvas
Cria máculas em si mesmo.
Portanto, não falar das falhas daqueles
Que estão no grande caminho
É a prática de um bodhisattva.

[33] As atividades do ouvir, contemplar e meditar
Tornam-se maculadas quando discutimos sobre bens e serviços.
Deixar o apego aos lares de amigos e benfeitores
É a prática de um bodhisattva.

[34] Ao falar de maneira rude,
A conduta de um bodhisattva torna-se maculada
E os outros seres sencientes são perturbados.
Portanto, abandonar as palavras rudes
E desagradáveis às mentes dos outros
É a prática de um bodhisattva.

[35] Uma vez acostumado aos estados densos e crenças primitivas
E habituado às emoções obscuras,
É difícil de revertê-las com antídotos.
Portanto, brandindo a arma da atenção,
Conquistar os estados mentais obscuros imediatamente quando surgirem
É a prática de um bodhisattva.

[36] Em resumo:
O que quer que você faça, em qualquer lugar onde esteja,
Olhe para o seu estado mental.
Manter continuamente a consciência atenta
Para realizar benefício aos outros
É a prática de um bodhisattva.

[37] Dedicar o mérito realizado pelos seus esforços
Para superar o sofrimento
De todos os seres sencientes —
Através da sabedoria completamente pura,
Livre dos conceitos de doador, recebedor e doado —
É a prática de um bodhisattva.

.

Texto do "autor":

Namo Lokeshvara,

Ininterruptamente, em ardorosa homenagem de corpo, fala e mente, inclino-me diante dos mestres supremos e do protetor Avalokiteshvara, que, cientes de que nada tem ida ou volta, trabalham unicamente para o bem de todos os seres.

Os buddhas perfeitos, fonte de todo o bem e de toda a felicidade, surgem da realização do Dharma sagrado. Doutrina. Como isto vem do conhecimento e do seu exercício, passo a explicar as práticas de um bodhisattva.


(...)

Para aqueles que desejam treinar no caminho do bodhisattva,
Apresentei estas Trinta e Sete Práticas de um Bodhisattva,
Baseadas no significado relatado nos sutras, tantras e shastras,
De acordo com as palavras dos seres sagrados.

Porém, já que é difícil para uma pessoa de baixo intelecto, como eu, compreender em profundidade a vasta conduta dos bodhisattvas, peço a paciência dos seres sagrados com quaisquer erros da lógica escrita, e assim por diante.

Por este mérito, possam todos os seres sencientes,
Através da suprema bodhichitta absoluta e relativa,
Se tornar como o senhor Avalokiteshvara,
Que está além dos extremos do nirvana e do samsara.


.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

SAMADHANA E A MAÇÃ


O óbvio já foi dito: o mais difícil de ser flagrado é o óbvio.

Quando eu era bebê, a melhor forma de me fazer relaxar e dormir era sair comigo de carro ou em qualquer outro meio de transporte. Quanto mais longo fosse o passeio ou a viagem, melhor para mim.

Minhas melhores memórias de infância referem-se a viagens e à casa de meus avós.

Quando eu era bebê, não gostava de comer. Gostava de coisas gostosas, mas não compreendia a necessidade daquilo.

Desde sempre, escolhi minhas próprias roupas e dizem que sempre soube combiná-las.

Aprendi a cantar, do meu jeito de bebê, antes de aprender a falar.

Aprendi a dançar antes de aprender a andar.

Desde muito pequeno, meus melhores amigos eram os filhos dos porteiros, das empregadas, e os meninos de rua que eu levava para dentro do colégio.

Quando eu era moleque, ia para a escola com brincos adesivos na orelha, só porque achava maneiro, e distribuía autógrafos para os colegas.

Aos onze anos de idade, comprei um exemplar de "Frankenstein", de Mary Shelley, com minha pouca mesadinha. Li o livro em uma semana. Reli em mais outra. Na terceira, eu era especialista em desenhar com excelência o rosto de Frankenstein, que vinha na capa do livro, em qualquer lugar, a qualquer hora.

Ainda hoje sou capaz. Qualquer hora te mostro.

Aos sete, se não me engano, já tinha feito um curso de "escritor" na Casa de Ruy Barbosa, no Rio de Janeiro.

Também aos onze anos de idade, avançado no inglês e com ouvido afiado para o som do francês, resolvi aprender o hebraico e a cultura judaica. Fui rebatizado - já que era batizado no catolicismo -, fiz bar mitsva, estudei o assunto por uns quatro anos. Abandonei a vida judaica também por reflexão e sentimento, ainda que fosse um mero garoto de quinze.

Aos quatorze, comprei uma guitarra e, desde então, jamais me afastei da música.

Aprendi outros instrumentos e sempre volto àquele onde comecei.

Passei a adolescência lendo e prestando atenção à vida.

Aos dezessete anos de idade, a única faculdade que me imaginava cursando era Filosofia.

Fui à frente no jornalismo porque aquilo me pareceu o meio-termo entre meus interesses e o "mercado".

Durante a faculdade, estive o tempo inteiro envolvido com música e com grupos de estudos.

Todas as vezes em que me desviei do jornalismo, fosse por vontade ou por força das circunstâncias, acabei lidando com educação, normalmente educação de gente mais pobre, com programas sociais diversos e com o mercado editorial. Livros.

Fui criado no meio das meninas. Minhas brincadeiras mais freqüentes na infância foram salada-mista, verdade ou conseqüência, gato mia, menino-pega-menina, menina-pega-menino, marco polo. Havia ainda a variação "menina-pega-menino-e-faz-o-que-quiser", jogo inventado no saudoso colégio Paula Barros e que nunca mais vi em lugar nenhum.

Nunca mais, até chegar à idade adulta e descobrir que é assim que as coisas realmente são. Pega menino e faz o que quiser.

Perdi a virgindade aos dez anos de idade, com uma empregada doméstica, mas jamais profanei qualquer coleguinha de escola. Apesar da estréia precoce, passei a adolescência inteira encostado na parede, sentindo calafrios na hora da música lenta.

Todas as minhas paixões, do primeiro ao vigésimo ano de vida, foram muito mais platônicas do que carnais.

Aos vintedois anos, reencontrei uma prima que não via desde os seis e por quem havia sido apaixonado. Apaixonei-me novamente e passei cinco anos com ela. Posso dizer, de certa forma, que foi com ela que perdi a virgindade novamente. Porque foi a primeira vez em que trepei amando alguém. Durante muito tempo, todas as namoradas posteriores tiveram certeza de que, um dia, eu voltaria a namorar a prima.

Aos vintequatro anos, declarei-me a minha musa. Sim, tenho uma musa desde antes do ano 2000. E até hoje é a mesma. Namorei com ela por dois meses e trouxe pela vida um bilhão de dúvidas sobre a relação artista-musa.

Quase nasci na Inglaterra. Alguns meses de diferença. Minha primeira viagem ao exterior me ensinou que, em outras partes do planeta, até o ar é diferente. Veio daí uma paixão irrefreável por apenas sair e respirar. Sair para cada vez mais longe e respirar cada vez mais fundo.

Lembro de cada cidade que já visitei na vida, ainda que não lembre dos nomes de algumas.

Tenho sonhos recorrentes há talvez trintedois anos.

Sonho que sou capaz de voar. E mesmo nos sonhos, existe a consciência de que voar é algo que eu sempre fiz. Quando o sonho começa, existe a certeza de que sou capaz daquilo.

Vôo de algumas maneiras diferentes: às vezes é como se eu nadasse no ar. Outras vezes, preciso de um travesseiro voador debaixo de mim, como se fizesse bodyboarding - esporte que pratiquei por anos e que hoje me traz saudades. Em breve, volto ao mar. Ainda aprendo a surfar.

Em outras vezes, vôo batendo os braços, como se fossem asas. Mas é sempre uma habilidade inata e é sempre algo que, estranha e angustiantemente, as outras pessoas dos sonhos não são capazes de fazer.

Um dado curioso é que, em certos sonhos, é parte importante da trama a reação das outras pessoas ao meu ato de voar. E é nítido também, nessas vezes, que não vôo para causar impressão. Vôo porque vôo. Assim como pássaros cantam e pessoas prestam atenção umas às outras.

Cada vez que sonho que estou voando, estou um pouco mais livre. O grande vilão de meus sonhos, o grande inimigo que minha consciência me traz à noite - quando não sonho lembrando das violências que sofri na infância, algo bem mais concreto - são os fios de alta tensão.

Isso mesmo, o único fator que, por vezes, transforma meus sonhos em algo de pesadelo é o medo de, em pleno vôo, chocar-me com os fios de alta tensão. Isso nunca ocorreu. Nunca levei um choque. Ainda assim, é quase irritante ter o ar cortado por aquelas estruturas medonhas. Se vôo alto demais, perco contato visual com a cidade. Se vôo baixo demais, tenho que ficar calculando entre os fios e os carros que passam pelas ruas.

Noite passada, eu estava voando novamente. Voando e batendo os braços. Desta vez, estava nu. Não era um manifesto, ainda que as outras pessoas estivessem vestidas, e eu não me senti nem um pouco constrangido. Assim como voar, estar nu pareceu mais do que natural.

Nesse último sonho, lembro-me que conversava com os outros de dentro de uma piscina. Eu dentro, eles do lado de fora. Era da piscina que eu levantava vôo e era pela janela da área da piscina que eu voltava, quando me cansava de voar.

Meus vôos variam de altitude. Poucas vezes sonhei flutuar por sobre o quarto. Muito poucas. As cenas interiores de vôo normalmente ocorrem em salões de pé direito altíssimo, como teatros municipais, ministérios e prédios assim.

Normalmente, são vôos ao ar livre. Ou por sobre as cidades - as que conheço e as que não conheço - ou sobre a vegetação. Noite passada, tirei um cochilo sobre a copa de uma frondosa e verde árvore. Dali, desci novamente para a piscina. Nu.

Há muitas vezes em que sonho com lugares em que nunca fui. E há muitas vezes em que chego a lugares e comento mesmo em voz alta: "já sonhei com isto aqui".

Lugares; não situações. Lugares físicos. Cidades, prédios, esquinas.

Meus pesadelos recorrentes também costumam ser padronizados: estou morando na rua, sob alguma marquise, sentindo-me completamente abandonado e refém de uma existência de bicho sofrido. Depois que, por força das circunstâncias, aprendi a ganhar o hábito de me desfazer sistematicamente de bens materiais e de relações viciosas, esse pesadelo ocorre cada vez menos.

Família já ocupou mais meus sonhos. Primeiro, eram as cenas de violência pura e simples. Depois, vieram aqueles pesadelos em que você tenta correr, mas não consegue.

No momento seguinte, vieram as cenas de luta. Eu simplesmente descia a porrada em quem havia me agredido. Mas assim, em um nível de deixar no chão mesmo, engasgando-se com o próprio sangue. Essa fase foi a mais sofrida. Quando sonhava assim, acordava suado, cansado, envenenado pela raiva.

Depois, passei a sonhar com discussões verbais. Longas, intermináveis, exaustivas e inúteis. Até que passei aos sonhos em que eu apenas estalava a língua e dizia coisas como "você é meu pai (ou minha mãe, tia, etc.). Não devia me tratar assim. Não devia tratar a si mesmo assim. Não devia tratar ninguém assim".

Até que parei de sonhar com isso.

A cada dia ou ano que passa, fico mais certo de que, ao longo da vida, o ser humano vai perdendo contato com algo que nasceu pronto e vai incorporando valores e experiências que o deformam para algo sem nome, carente de significado e lugar.

Tanto pior será a experiência - e o caminho de volta - quanto menos propício for o ambiente onde ele for gerado e criado.

Eu sei quem sou. Eu sou quem sou. Se bem que ter descoberto isso foi o mais difícil que fiz até aqui.

Não sou Deus. Não sou como Deus. Não perco meu tempo com isso.

Ontem ocorreu-me a idéia clara de que imagem e semelhança é muito diferente de identidade total. Compare sua identidade a sua carteira de identidade. Você já viu alguma 3x4 que fosse... perfeita?

Assim como a fotinho tosca, somos irradiações de algo. No caso, do inominável.


Querem saber o sentido da vida? Vou arriscar:

devolver a maçã à árvore.


Tomá-la, se for o caso, estudá-la incansavelmente, até perceber que o paraíso vale muito mais a pena.


(leia: "Os seis tipos de riqueza e os quatro pilares do conhecimento", Sri Sri Ravi Shankar).

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sábado, 13 de fevereiro de 2010

A PRÓTESE DE DIÓGENES


Todo objeto é uma prótese.

Anos atrás, passei por uma cena das mais típicas da atualidade: vinha eu tomar um chope no Baixo, quando cruzei com antigos colegas de trabalho.

Olharam-me de cima abaixo. Analisaram cada detalhe. Sorriram empolgados, como se sorri toda vez que se está diante de uma atração qualquer, de uma curiosidade.

Sim, a partir do momento em que estamos todos inseridos em um mesmo joguinho, funcionando nos mesmos horários, com os mesmos objetivos e os mesmos valores, totalmente uniformizados, passa a ser divertido saber o que cada um está tirando dessa receita geral.

Gostamos de saber da vida dos outros porque acreditamos que essa é uma pequena versão da nossa. Ouvindo sobre o que cada um está fazendo de sua trajetória, somos automaticamente - se bem que voluntariamente - levados a nos comparar com quem se apresenta.

Se eu digo "tenho ido muito à praia", quem ouve pode pensar: "não tenho ido muito à praia, mas estou subindo rápido na hierarquia de minha empresa. Não vou à praia, mas nem me lembro da última vez em que precisei me preocupar com minha vida. Tenho tudo diante de mim, se bem que me esforce bastante para isso".

A pessoa pensa isso e automaticamente procura saber como você, que vai muito à praia, resolve os outros aspectos de sua vida.

Se você responde que o resto da vida vai mal, quem te ouve se sente aliviado. Sente em sua frustração a recompensa por todo o esforço que vem fazendo.

Se você responde que está tudo bem, a inveja é quase inevitável. Diante disso, ou a pessoa te lança alguma piada bem sarcástica ou guarda para comentar com terceiros que você é um vagabundo.

Quando encontrei esses ex-colegas, não tardou para que me fizessem a clássica pergunta de jornalistas:

"você está aonde?".

Perguntar aonde (sic) você está é perguntar para que empresa está trabalhando. Sabemos que, no mundo de hoje, o vassalo tem orgulho de seu suserano. Se você é funcionário de uma grande empresa, é como se você fosse aquela empresa. Você veste a camisa, como tentam te convencer a fazer, e passa a lidar com o mundo como se pertencesse a alguma família real.

Quando me fizeram a pergunta, algo em mim trouxe à tona uma certa presença de espírito. Calmamente, respondi:

"estou aqui".

Lembro que a resposta não provocou nem o mais leve sorriso. Fui interpretado como um debochado, um irresponsável. Estava nítido. Era como se a resposta dissesse, em poucas palavras, que eu não dava a mínima para empresas. Parece que deixei claro também o quão pouco estava interessado em saber "onde" aquelas mesmas pessoas estavam.

Realmente, nisso eu concedo: não estava interessado mesmo. Para mim, não faz e nunca fez qualquer diferença.

Ambição profissional. Não tenho nenhuma. Foi difícil reconhecer isso a mim mesmo. Foi difícil me descolar das expectativas de terceiros.

Foi difícil, mas consegui: não tenho qualquer ambição profissional. E o mais curioso disso é que sou capaz de ir à cova me olhando no espelho e me parabenizando por não ter nenhuma.

Difícil exprimir o engulho que sinto ao ouvir os outros gabando-se do tempo de vida que desperdiçam, em busca de alguma recompensa futura. Seja a recompensa material, seja a recompensa de poderem dizer em público o quanto estão bem-sucedidos e passarem a ser vistos com melhores olhos por isso.

Lembro-me dos tempos da escola, em que colegas gordinhos - e principalmente as gordinhas - enchiam-se de adereços, estojos caros, roupas coloridas, mochilas da moda, tudo para incorporar valores que não possuíam dentro de si. Árvores de Natal.

Lembro de um antigo colega de faculdade inventando uma propaganda perfeita:

"se você tem um pau pequeno, nós temos um carro grande".

Lembro que cheguei em Brasília sem nada. Era talvez o único dali que não nadasse em dinheiro público ou em frutos de negociatas, o único que não tinha as costas esquentadas por uma certa sociedade que construiu a capital, deixou pistas estilizadas em seus monumentos e palácios e é dona de tudo (aqui e acolá).

Lembro que cheguei em Brasília sem um automóvel, algo que me rendeu constantes olhares arregalados e a pergunta de "como você consegue"?

Ainda assim, no segundo dia na cidade, arranjei uma namorada. Terminamos, terminamos mal, e passei o rodo na brasólia sem quase sair de casa. No final da temporada, comecei com outra moça. Alguém que me esfregava no rosto que eu já havia conseguido. O que antes eu buscava, agora já havia conseguido. Antiga capa da Playboy, ex-mulher de diretor de banco, quatorze anos mais velha do que eu.

Semana passada, quando espalhei para os amigos um e-mail falando sobre a necessidade de arranjar um trabalho em qualquer cidade, foi essa bela e querida criatura quem primeiro me respondeu, oferecendo sua casa na capital para que eu ficasse por quanto tempo fosse necessário. Poderia até levar o Nietzsche, meu cachorro de circo.

Lembro de comentar sobre esse envolvimento com um amigo sábio e de ter ouvido que, embora ele não soubesse quem era ela, embora não quisesse clicar nos linques de internete para descobrir, ele sentia que essa mulher seria um marco importante em minha vida. Sentia que as coisas mudariam depois daquilo.

Dito e feito.

Vim para São Paulo pensando em muitas coisas. Uma delas foi que seria bom estar cercado de urbanização de alto nível - não por outro motivo escolhi a Avenida Paulista, onde as linhas são retas, o asfalto é perfeito, há até linhas em relevo, nas calçadas, para que os cegos saibam para onde vão - embora não saibam realmente e não estejam indo a lugar algum.

Vim para cá iludido pela qualidade de vida que o dinheiro pode comprar. Passei um ano inteiro me esforçando, a fim de conseguir entrar no ritmo desta cidade e, assim, colher os frutos que ela oferece.

Passei um ano inteiro correndo atrás de um prejuízo causado pelo simples fato de estar aqui. Adoro esta cidade, é a síntese de centenas de culturas e mentes, mas passei um ano financiando a própria cidade e colhendo apenas o fato de conseguir me manter nela.

Você já percebeu que lugares que te cobram entrada estão te dizendo que valem mais do que você?

Perceba: existe um bar funcionando. Teoricamente, o bar precisa de clientela. Logo, você é o bem mais precioso que pode adentrar a porta do estabelecimento. Acontece que você, por si só, não é suficiente. Para estar no mesmo patamar daquele lugar, você precisa ir até lá e pagar um complemento em dinheiro. O bar X vale você e mais vinte merréis.

Talvez, caso o estabelecimento te oferecesse a chance de ser mais você, já que você está até pagando para estar ali, a coisa fizesse sentido. O que ocorre, porém, é que você paga para submeter-se às regras, ao ritmo e aos valores daquele lugar. Você paga para ser parte de algo maior, de uma entidade cujo humor, mesmo o humor, é coletivo e se sobrepõe ao seu.

Mais ainda: quando você paga para ser parte de algo, está na verdade pagando por um filtro. Se eu pago cinqüenta merréis para estar em algum lugar, estou garantindo que só vá encontrar pessoas que podem e estão dispostas a pagar cinqüenta reais por aquilo.

Quem se surpreende, quando vê a modelo mais bonita do mundo namorando um medonho jogador de futebol? Talvez a moça não seja realmente uma mercenária. Talvez apenas circule pelos mesmos ambientes que o mocorongo. É evidente que, no meio da rua, a moça jamais destinaria um segundo olhar ao infeliz. Mesmo assim, mesmo assim. Quem nunca ligou a TV e ouviu alguma figura nobre da República mostrando-se o mais completo boçal, amparando-se apenas na estrutura que tem por detrás?

Quem nunca votou em algum coronel bronco e sanguinário da zona rural? Quem não o louva pelos lucros do agronegócio?

Quem não se entusiasma com a estrutura por detrás?

Quem já ligou a televisão em um domingo à tarde? E quem daria cinco segundos de atenção ao papo-furado do apresentador, caso o encontrasse em uma festinha?

Outro dia, ouvi um dos mais famosos apresentadores do país, um que monopoliza a tarde de domingo inteira, o dia em que o trabalhador está em casa e poderia receber algo que o ajudasse a subir de nível, lutando para pronunciar corretamente o nome Iron Maiden. Sorte que não pago pela transmissão da TV. Moro debaixo da antena da emissora e sou presenteado com toda essa maravilha gratuitamente.

Em São Paulo, passei algumas vezes por ruas caras, por lojas que ofereciam coisas que eu não seria capaz de comprar. Passei um ano refletindo sobre como eu poderia dar um salto social e me colocar em posição de desfrutar de tudo.

Até que ontem, quando me toquei, eu passeava pela Avenida Paulista sem camisa, de calça de ginástica, em meio a toda a elegância.

Eu passeava sem camisa e as mulheres me olhavam, mais do que olhavam as roupas dos outros homens.

Passeava sem camisa e, mesmo assim, a massa pobre me chamava de patrão.

Passeava sem camisa e os policiais ficavam confusos, sempre notando minha presença, mas sem jamais interferir.

O que parece ter me poupado da abordagem dos policiais foi, até onde me arrisco a comentar, a cor da pele e o grande relógio prateado que eu ostentava no pulso.

Foi nítido. Não preciso me justificar. As feições caucasianas e o relógio me caracterizavam como alguém apenas excêntrico, espontâneo, sofrendo de calor. E não como algum marginal que invadira o cenário de luxo e aparências da Avenida Paulista.

Bastou um relógio no pulso para que até os mais cegos dos cegos percebessem que não deviam mexer comigo.

Porque eu havia dominado aquela porra definitivamente.

Voltei da Amazônia meio torto. Ou melhor: voltei convicto, tendo visto na prática o que antes era pura teoria:

parece que a natureza do homem é criar universos abaixo de si. E no momento seguinte, hipnotizar-se com sua própria criação, a ponto de não conseguir enxergar mais nada em volta.

Hoje, quando ouço alguma discussão sangrenta, cheia de veias saltadas, sobre algum assunto medíocre, olho para o céu e me lembro de que, cem metros além dali, aquelas pessoas nem podem ser vistas.

Hoje, quando tentam me enredar em alguma trama de hostilidade, fofocas, venenos etc., apenas penso no tamanho do planeta, na paz dos bichos que correm por aí e concluo que nenhuma mente humana - nenhuma mesmo - é capaz de me convencer a perder meu tempo com mesquinharia.

Só sinto pena. Digo que sinto amor pelo homem, mas talvez sinta apenas compaixão. Dizem que é o suficiente. Para quê, eu não sei. Será que caminho para salvar minha alma? Se for por aí, que bem colherei, ao ser uma alma salva, mas condenada a conviver com toda essa tosqueira? E caso minha alma se salve de tudo e algo me puxe para outra existência, em outro lugar distante, ter deixado para trás os sofredores não terá sido a mesma coisa que fazem os próprios sofredores uns aos outros?

Senhor, ainda tenho minhas dúvidas. O senhor sabe onde me encontrar e sabe que estou atento. Mostre-me como se faz.

Foi um caminho longo até aqui, mas já aprendi que o melhor que posso oferecer a meu próximo é um sorriso.

Não posso interferir com ações em sua trajetória. Cada um está rumando para onde está rumando. Porque escolheu rumar para lá, ainda que não tenha consciência disso. Dessa forma, interferir é desviar. Só que alguém que está trilhando um caminho e é repentinamente desviado vai fatalmente reagir.

Volto ao início do que disse: diga que está bem e perceba que quem te ouve internaliza o que você disse e se compara a isso.

Diga que está mal e quem te ouve enxerga a oportunidade de estar melhor do que alguém. Não será preciso muito para que essa pessoa se coloque em posição superior, ofereça-se para ajudar, mas peça em troca sua participação em seus próprios dramas.

Generosidade sempre. Dispor-se a ajudar em todas as vezes. Mas ter sempre em mente que qualquer ajuda externa, vinda dos demais, tem seu preço. Seja em dinheiro, em atenção, no que quer que a outra pessoa esteja em falta.

O ser humano não é um bicho sincero. Não porque lhe falte o coração, mas porque lhe falta a auto-consciência. O ser humano está voltado para fora, para as aparências, e só é capaz de medir as coisas por seus efeitos. Mergulhados em paliativos, sofrendo, ferindo uns aos outros, todos em busca de um acalento que não virá jamais pela racionalidade.

Tenho uma prima querida que anda me aconselhando fé. Não sei em quê. Talvez ela peça fé nela mesma, e isso eu tenho. Talvez, quando pede fé, o ser humano esteja pedindo que você acredite nele - não em seus semelhantes. Aliás, quem quer ser semelhante?

Estou longe de ter concluído minhas reflexões. Mas sei, sinto, vivo e passo adiante que isso não importa. Não creio na sinceridade de nenhum autor que se diga propenso a escrever porque está em busca de algo. As mentes mais fervilhantes que conheço não são capazes de passar para o papel o que sentem. Porque, no caso deles, é tudo verdade.

Já não me fio mais no que penso para sintonizar a maneira como me sinto. Lido com minha mente como um delicioso brinquedo que a natureza me pôs nas mãos. Modelo-a como massinha. Observo a consciência dos outros como argila. Umas disformes, outras um tanto mais esculpidas. Mas é tudo terra. É tudo poeira. É tudo um estado, e não uma natureza em si.

Não tenho fé em nada que não tenha nascido pronto. Não tenho fé, esperança ou interesse na cultura ou na sociedade. Acredito que qualquer feito empreendido pelo homem trará sempre em si sua mais evidente marca: a imperfeição.

Diógenes era um filósofo. Possuía apenas sua túnica e o barril dentro do qual morava, a céu aberto. Certo dia, figura importante aproximou-se e perguntou:

"do que você precisa? O que deseja realmente? Pede-me o que quiseres".

Diante disso, Diógenes respondeu:

"desejo apenas que te afastes do meu sol".

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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

OS ASSUNTOS DOS HOMENS


A mulher tem três estágios:

. no primeiro, ela quer aprovação;

. no segundo, ela quer acolhimento;

. no terceiro, ela quer devoção.

No primeiro momento, seus problemas de homem a fazem cogitar outra pessoa. Porque te tornam menos interessante e porque mulheres querem associar-se ao mais "forte" da tribo.

No segundo momento, seus problemas são muito bem-vindos. Servem para criar intimidade e cumplicidade, valores que, segundo elas, são uma via de mão-dupla.

Já no terceiro momento, seus problemas são uma sentença de morte. Mulheres gostam de ser o foco de seus pensamentos, além do fato de quererem ser entretidas. Um homem com problemas não é divertido. Alguém assim as faz pensar que poderiam estar se divertindo mais em outro lugar.

Érico, amigo meu das antigüidades, já comentou certa vez:

"estou sem grana para namorar".

Minha última mudança, de Brasília para São Paulo, custou R$ 1.500,00. Caro, não é? É que eles calculam o valor utilizando também a estimativa do seguro, caso algo ocorra com seus bens. Esse seguro é calculado com base nos valores que você mesmo informa. Ou seja: se você prezar demais por suas coisas, a transportadora lucra com isso. Quanto mais valor você der a seus bens, mais eles vão cobrar para lidar com eles.

Agora pedi um orçamento a algumas empresas. Mudança de Sampa para o Rio.

Um amigo ofereceu o orçamento de R$ 600,00.

Uma outra empresa disse R$ 1.500,00.

Mas a transportadora Fink, uma terceira fonte, ofereceu a proposta de R$ 4.000,00.

Sim, quatro mil reais.

Eis aí uma prova concreta de que Deus não se intromete nos assuntos dos homens.

Alguém já parou para pensar que toda vantagem implica na desvantagem de uma segunda pessoa?

Como ficaria o mundo se, em toda parte, todas as atividades fossem regidas pela ética da vantagem?

Ficaria como está.

Dê bobeira. Veja seu companheiro te passando a perna com um luminoso sorriso no rosto.

Outro dia, caí na besteira de comentar sobre meu lado mais... espiritual com algumas poucas amigas.

Desde então, não há um só dia em que eu não ouça piadas que contraponham monges hindus ao desejo sexual dessas meninas.

Não, nada mais é sagrado.

Não, não adianta pedir que parem. É mais forte do que elas.

Aliás, se há outra função para homens, junto a mulheres, é ter de arcar com toda a hostilidade que elas não sabem onde colocar. Hoje em dia, não conheço brincadeira mais constante do que o joguinho de ciúmes, o deboche, a hostilidade entremeada a pequenos xingamentos, só de brincadeira, e a tensões decorrentes de você simplesmente não querer brincar daquilo.

Mas é tudo sempre brincadeira. Mulheres não costumam ser capazes de olhar para si mesmas muito abaixo da superfície. Foram ensinadas a viver das aparências. Logo, são incapazes de perceber que suas brincadeiras expõem mais sobre si do que decotes, minissaias e alisamentos japoneses.

Diz-se - e compreendo - que o celibato é um ato de amor. O que tenho colhido, no entanto, é a frustração mais extremada por parte do sexo oposto. Como se, em vez de retirar-se do jogo, manter-se celibatário representasse recusá-las a todas.

Já formulei a teoria do amigo gay. Acredito que gays são bons amigos para mulheres porque não as põem em xeque. Um homossexual não vai pegar você, não vai pegar aquela sua amiga que te deixa inferiorizada, tamanha a robustez do bumbum, não vai criar nenhuma escala de interessância entre as meninas. O amigo gay é neutro, é café-com-leite e não deixa as inseguranças à prova.

Já o heterossexual celibatário, no mundo de hoje, passa pelo esnobe da pior das espécies. Como podem lidar com um homem assim as mulheres cujo sonho é serem aprovadas, acolhidas e louvadas? É como se você as jogasse de lado.

Afinal, diz o ditado que parece cada vez mais real, "amigo de mulher é cabeleireiro".

Quatro mil reais na mudança. Mulheres debochando do que antes as caracterizava: a sensibilidade, o cuidado, a distância respeitosa das relações que as transformam em simples objeto.

Outro dia, certa moça que se queixava da brutalidade dos homens sentenciou-me como alguém cheio de frescuras.

O que será que ela quer?

Devoção.

Uma vez, seis anos atrás, eu estava de bob's pelo Baixo Gávea, tomando um chope na calçada, no balcão do Braseiro, quando um coroa de seus cinqüenta anos, todo vestido de branco, me interpelou e começou a conversar sobre a vida.

Ali, falando sobre mulheres, lançou o termo devoção. Ele disse e perguntou:

"você é um devoto?".

Completou o pensamento com um longo suspiro, um gole no próprio chope e um reflexivo "pois é".

Amor pela verdade, isso não há ali. Mulheres querem ilusões. São viciadas em ilusões. Ainda mais hoje em dia, quando a ilusão tornou-se um valor diria até emocionante. O direito à ilusão.

Quando ouvir dizer que algum padre, monge ou sacerdote de qualquer espécie é homossexual, veja se foi uma mulher quem disse. Se tiver sido, apenas afague sua testa, sorria e vá se ocupar de algo que possa dar certo.

Quatro barão na mudança. Mulheres lutando para ocupar a vitrine.

Não tenho a mais tênue sombra de dúvida: Deus não se intromete nos assuntos dos homens.

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sábado, 6 de fevereiro de 2010

SONHOS


Meu sonho é virar diplomata e rodar o mundo oitocentas vezes, fazendo algum bem às pessoas que realmente precisam e sem nunca mais ter de pensar em grana.

Meu sonho é uma vida simples, ocupando o tempo com meu próximo, algo que já aprendi na pele que sempre retorna em forma de felicidade e paz de espírito.

Obrigado, Mangueira. Por duas vezes, vivi com você. Estou aberto à terceira.

Meu sonho é me dedicar a minha arte, até que, sem pensar no assunto, ela comece a me sustentar.

Meu sonho é sentar em um sofá, em uma casa de sítio, desfrutar prazeres simples e pensar apenas em arte e no que há de mais elevado - quando não estiver plantando em minha horta auto-sustentável ou colhendo dela tudo de que preciso.

Meu sonho é viver chapado no meio do mato.

Meu sonho é me livrar das últimas coisas que me prendem a necessidades sem-sentido, assumir a posição de lótus e nunca mais me levantar.

Meu sonho é morar de frente para a praia, ir à praia de manhã e à noite, trocar as noitadas pelo vai-e-vem das ondas.

Meu sonho é casar, ter filhos e só pensar no universo que criei dentro de casa.

Meu sonho é ganhar o que me falta de auto-estima e me manter celibatário para sempre, livre dos jogos de sedução, rejeição e auto-afirmação.

Meu sonho é que se acendam luzes nas cabeças de meus familiares.

Meu sonho é não mais olhá-los como família, mas apenas como pessoas, gente sofrida e que ilude a si mesma e aos outros o tempo inteiro.

Meu sonho é que amor queira dizer amor, que ajuda queira dizer ajuda, que preocupação queira dizer preocupação.

Meu sonho é que aquele que ajuda não se enxergue automaticamente em posição de poder ou superioridade.

Meu sonho é que o ajudado não seja visto jamais como um inferior.

Meu sonho é que se troquem mais amor, mais favores, mais interesse pelo outro.

Meu sonho é que não se nivelem por baixo, passando à frente apenas o pouco amor que receberam.

Meu sonho é que não se contentem com pouco.

Meu sonho é que vivam pensando na vida, e não nos olhares de terceiros.

Meu sonho é que se amem mais.

Meu sonho é ser acolhido pela família.

Meu sonho é não depender deles para nada, visto que todo presente vem com a cara, o preço e as marcas de quem o ofereceu.

Meu sonho é viver por quanto tempo seja possível, sem jamais abrir mão da vida ou do caráter em nome de ganhar mais tempo ou luxo sobre a Terra.

Meu sonho é morrer exatamente no momento em que for apropriado; nem um segundo antes, nem uma dose de remédio depois.

Já até estou pronto. Se for agora, que seja enfim. Entrego-me inteiro, aqui.

Meu sonho é jamais depender da indústria farmacêutica para nada; já aprendi que há agentes nessa vida cujo interesse mais sincero é nossa doença, nossa miséria e nossa dependência.

A tecnologia para tratar de todos já está disponível.

Meu sonho é não devotar um segundo de vida que seja àqueles que se alimentam justamente da vida, do tempo, da ocupação que lhes dispenso.

Meu sonho é que todos vivam em paz como escolherem, sabendo que tudo é uma escolha.

Meu sonho é que todos aqueles que se referem "às coisas como são" dêem uma viajada por aí e constatem que as coisas não são as obras das pessoas, e que, acima dessas obras, existe o mundo real, a natureza, os sentimentos de verdade.

Meu sonho é que percebam que abrir mão da vida em nome do dinheiro já é em si um prejuízo incalculável.

Otimismo? A doença do "ótimo"? O canto do mendigo? A cegueira que chama de bom o mínimo que terceiros deixaram para trás?

Pessimismo? A mazela da limitação visual? Aquela que flagra apenas o que não dá certo?

Realismo? A visão estreita do homem, que chama de realidade qualquer teatrinho que montem diante de si?

Mude-se para o Sudão. Em algum momento, uma pessoa mais velha vai tentar te convencer a cortar fora o clitóris de sua namorada. Afinal, ali, é assim que as coisas são. "Sejamos realistas", alguém vai dizer.

Idealismo? A opinião de que a idéia é anterior à realidade? O domínio do ego, da lucidez limitada, da razão, sobre a essência das coisas?

Não. Mas não mesmo.

Que cada um compreenda que, por mais esperto que seja, sempre será capaz de apreender apenas o que já tem dentro de si. Quem te vê como louco tem dentro de si a loucura necessária para identificá-la em você. Quem te vê como vagabundo tem dentro de si o desejo de vagabundear, embora não tenha culhão suficiente para admiti-lo. O princípio é extensivo e ilimitado no tempo e no espaço.

Esperança, não tenho nenhuma. Esperança pressupõe que as coisas acontecem por mágica, e não fruto de algum processo.

Fé no ser humano, tenho menos ainda. Trata-se o homem de um bicho, sujeito às regras gerais da selva, alcançando por vezes, com esforço, apenas quando se dispõe, um mínimo de sentimento, por baixo de seu estreito e mesquinho instinto de sobrevivência.

Tenho amor pelo homem, sou um homem, mas não tenho fé. Não esperança. Absolutamente nenhuma.

Já aprendi que qualquer espécie de mudança, progresso ou evolução acontece por vontade. Por interesse. E qualquer dessas coisas só existe de dentro para fora. É o homem que muda, se encontra entre outros que mudam, e aí o contexto geral é alterado. Não acredito em revoluções, em leis, em novas ordens. Tudo, mesmo a tão clamada PAZ, parte de dentro. Mas não está na natureza humana, segundo vejo, qualquer desejo divino.

Não está ali também qualquer desejo mortal. Vejo o homem, a criança, como uma página em branco, sujeita às conclusões a que chegaram os mais velhos. Ensinem um menino a ser um caçador e assim ele será. Ensinem-no a ser um fazendeiro e assim ele será. Ensinem-no que ele mesmo é um cão e esperem para ver como ele vai agir.

Esperança, nenhuma.

Tenhos sonhos. No máximo, tenho sonhos.

E tenho a eternidade por cima, cobrindo qualquer dificuldade de compreender o que já passou da fase de ser entendido: está aí para ser desfrutado.

No presente.

No presente, estou mudando novamente. De trabalho, de cidade, o meio do caminho está mudando. Não o fim, mas o meio. Encaro as incógnitas que tenho diante de mim como lições a serem aprendidas.

Tudo é neutro. Não há novidade boa, não há novidade ruim.

Em relação aos próximos dias, não sei o que vai acontecer. Sei, no entanto, a que coisa estou ligado: a minha vida. Abaixo disso, o que precisar ser deixado pelo caminho será abandonado sem que eu olhe uma única vez para trás.

Confio na força que faz tudo acontecer. Aguardo para ver que papel me está sendo destinado.

Faço minha parte, que é procurar manter os olhos abertos e o coração fervilhante.

Confio apenas na força. Presente em mim mesmo e presente em todas as coisas.

Apenas na força, eu confio.

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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

BORBOLETAS SOBRE MIM


Tem uma borboleta morando comigo há mais de um mês.

Pode não ser a mesma sempre. Já até a vi acompanhada, namorando sobre o microondas.

Até ano passado, eu matava esses bichos.

Foi uma última delas, laranja, fluorescente, tão grande que me fez pensar que aquilo devia ter sentimentos, que me fez mudar de idéia.

Agora, toda vez que vou ou volto de viagem, há pelo menos uma borboleta morando comigo. Laranjas, marrons, pretas... Às vezes são várias.

Fazem-me inclusive boa companhia.

Já houve vez em que eu concluísse algum pensamento tosco de maneira pessimista, adentrasse a cozinha e fosse surpreendido pelo bater das asas em meu rosto.

Coisas assim têm me feito acordar novamente para o que importa nesta vida.

Nunca mais despejarei uma borboleta que se aproxime de mim. Podem morar comigo sempre que precisarem. Sempre haverá espaço.

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É conhecimento geral, então não cito autores:

A borboleta é um símbolo da alma, pois da mesma forma que abandona a crisálida para voar, o espírito se liberta do corpo físico para ganhar espaço infinito. Representa também o renascimento, a ressurreição e a imortalidade. No Japão, está associada à mulher. A metamorfose de seu ovo para lagarta e depois para crisálida e borboleta indica as etapas da alma para a iluminação. E duas borboletas juntas indicam felicidade matrimonial.

O poder da borboleta é como o ar, é a habilidade de conhecer a mente e de mudá-la, é a arte da transformação.

Podemos estar no primeiro estágio, onde a idéia nasce, mas ainda não é uma realidade. É o estágio do ovo, o ponto de criação de uma idéia;

O segundo estágio, da larva, é onde temos que tomar uma decisão;

O terceiro estágio, do casulo, é o desenvolvimento do projeto, é fazer para realizar;

O estágio final, a transformação, é deixar o casulo e voar; é a realização.

Percebendo onde estamos, dentro desse processo, podemos seguir em frente. Use o ar e os poderes mentais. Tenha clareza mental e procure organizar um projeto. Assim, você subirá o próximo degrau de sua vida.

A psicanálise moderna vê na borboleta um símbolo de renascimento.

O termo grego psyche, originalmente, tinha dois significados: um deles era alma; o outro, borboleta, que simbolizava o espírito imortal. Na mitologia grega, a personificação da alma é representada por uma mulher com asas de borboleta. Segundo as crenças gregas populares, quando alguém morria, o espírito saía do corpo em forma de borboleta.

É o símbolo da alma liberta de seu invólucro carnal, como na simbologia cristã, e transformada em benfeitora e bem-aventurada.

Para os mexicanos, os guerreiros mortos acompanham o Sol na primeira metade do seu curto visível, até o meio-dia. Depois, os guerreiros descem à terra sob a forma de borboletas ou colibris. Essa associação se deve ao fato da analogia da borboleta com a chama. O deus do fogo asteca (HUEHUETEOTL) levava como emblema um peitoral chamado borboleta de obsidiana. Também é o símbolo do sol negro, pois atravessa o mundo subterrâneo durante seu curso. É o fogo oculto, ligado à noção de sacrifício, morte e ressurreição.

A mariposa é símbolo da alma à procura do divino, consumida pelo amor místico, como a borboleta, que, irresistivelmente atraída pela luz, queima suas asas. É também símbolo de uma humanidade que anseia levantar vôo para as alturas do amor e que, em uma noite fria, clama por mais asas.

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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O MITO DA CAVERNA


Quero chamar Platão e José Saramago. Vamos brincar de Zorba, o grego, trocar idéias e caminhar descalços por aquela porra toda.

No dia em que o escritor conseguir realmente pôr para fora toda a náusea, toda a ânsia, toda a inquietude e o desejo de contribuir, terá escrito sua última linha.

Sou compositor e sei que música é diferente. Música, você vai buscar lá em cima. Já a literatura, essa vem lá de baixo.

Diferente de outros, o escritor só vai em frente porque fracassa.

Fracassa diariamente. Fracassa a cada ponto final. A cada frase. A cada palavra ou letra.

Existe um ensinamento hindu que é assim:

imagine que estejamos juntos, à noite, sob um céu estrelado. Imagine que eu me vire para você e diga "olhe aquela estrela".

Não vai adiantar que eu aponte a estrela. Você não a verá. Você vai perguntar "qual delas?".

Agora imagine que eu diga "olhe aquela estrela, em cima daquele galho de árvore". A estrela não tem nada a ver com a árvore. Uma está no céu, outra está na Terra. Ainda assim, com a referência da árvore, talvez você veja a estrela.

Muito se fala e nada se diz.

É tanto artista e tão pouca arte. É tanto discurso e tão pouco conteúdo.

Difícil preocupar-se com a estética de um texto, quando seu coração está voltado apenas para seus efeitos. Difícil rasgar o peito e oferecer um pedaço de seu coração a cada amigo, a cada amigo desconhecido, a cada irmão, a cada semelhante.

Já aprendi há tempos: mesmo a maior das verdades, quando ouvida de fora, transforma-se apenas em mais um conceito.

Falar para quê? Para ser visto de fora como escritor e, aí sim, ser capaz de dar algum valor a mim mesmo? Passei dessa fase.

Para nutrir a ilusão de que, organizando idéias racionais, estou cada vez mais próximo da verdade? Passei dessa também.

Para apresentar-me ao mundo e, a partir de minha obra, reunir em volta de mim as pessoas que podem ser mais convenientes ou que podem servir para justificar o que penso, oferecendo uma imagem no eterno espelho do ser humano? Já afoguei Narciso nessa.

Tudo o que o ser humano precisa ler, ouvir ou compreender - para além do que é capaz de reunir na própria experiência da vida, como sabem bem os shivaístas - já foi dito por meu bom e amado Platão.

A imagem que segue foi extraída da wikipedia, assim como o pequeno texto. Não a uso por acaso.


Antes de mais nada, acredito que posso me privar de comentar com o quê, no chamado "mundo contemporâneo", a imagem se parece.

Em segundo lugar, ter ido à wikipedia - e não a fontes mais pedantes - em busca desse texto serve para mostrar a todos que o conhecimento está disponível. Deixar sua consciência nas mãos de terceiros e lidar com o mundo sob a ótica do "é assim que as coisas são" passa a ser apenas uma opção.

Você pode optar pelo que quiser. É uma pena, no entanto, que sua ignorância, seu não-saber, force minha própria vida um pouco para baixo.

Sim, infelizmente, estamos todos amarrados. Talvez, no fundo, resida aí meu egoísmo em dividir as coisas que já sei ou já aprendi: estou tentando melhorar meu próprio universo.

Talvez você faça parte dele. Talvez não. Talvez seja "apenas" um leitor. Talvez eu faça parte de seu universo, mas não o contrário.

De qualquer forma, depois de descobrir em boa medida quem sou realmente, passa a ser opção minha só ocupar lugares limpos e dourados nas consciências dos que me cercam.

Segue Platão, com um extrato da obra A República.

O mito da caverna, por Platão


Sócrates – Agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoços acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.

Glauco – Estou vendo.

Sócrates – Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que os transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.

Glauco - Um quadro estranho e estranhos prisioneiros.

Sócrates - Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e de seus companheiros, mais do que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte?

Glauco - Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida?

Sócrates - E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo?

Glauco - Sem dúvida.

Sócrates - Portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam?

Glauco - É bem possível.

Sócrates - E se a parede do fundo da prisão provocasse eco sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles?

Glauco - Sim, por Zeus!

Sócrates - Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos fabricados?

Glauco - Assim terá de ser.

Sócrates - Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?

Glauco - Muito mais verdadeiras.

Sócrates - E se o forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram?

Glauco - Com toda a certeza.

Sócrates - E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?

Glauco - Não o conseguirá, pelo menos de início.

Sócrates - Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homens e dos outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos. Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu do que, durante o dia, o Sol e sua luz.

Glauco - Sem dúvida.

Sócrates - Por fim, suponho eu, será o sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal qual é.

Glauco - Necessariamente.

Sócrates - Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com os seus companheiros, na caverna.

Glauco - É evidente que chegará a essa conclusão.

Sócrates - Ora, lembrando-se de sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram?

Glauco - Sim, com certeza, Sócrates.

Sócrates - E se então distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em último lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia?

Glauco - Sou de tua opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de viver dessa maneira.

Sócrates - Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: Não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol?

Glauco - Por certo que sim.

Sócrates - E se tiver de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo?

Glauco - Sem nenhuma dúvida.

Sócrates - Agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar, ponto por ponto, esta imagem ao que dissemos atrás e comparar o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna, e a luz do fogo que a ilumina com a força do Sol. Quanto à subida à região superior e à contemplação dos seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível, não te enganarás quanto à minha idéia, visto que também tu desejas conhecê-la. Só Deus sabe se ela é verdadeira. Quanto a mim, a minha opinião é esta: no mundo inteligível, a idéia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de reto e belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública.

Glauco - Concordo com a tua opinião, até onde posso compreendê-la.

(Platão, A República, v. II p. 105 a 109)

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