quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

FROWNING AT THE FACE OF GOD


Arquiteto? A mulher é a prova concreta de que Deus é escultor.

O grande problema do mercado de trabalho é que ele é a união de duas das piores coisas do mundo: mercado e trabalho.

Para ser pior, só se fosse banco de mercado de trabalho. Ou banco de engarrafamento de mercado de trabalho.

O que você está fazendo da vida? Eu sei: construindo uma pirâmide.

Já foi ao Egito? É um mistério a maneira como cada escravo punha uma pedra daquelas no lugar, não é? Devia levar o dia inteiro.

Esse faraó devia ser um sortudo mesmo. Se todo mundo se dispunha a dedicar a vida a pôr uma pedra em seu monumento... Talvez isso em si seja a prova concreta de sua superioridade divina em relação aos demais.

Hum, acho que entendi.

O dia tem vinte e quatro horas. Você dorme durante oito, sobram dezesseis. Oito dessas você gasta colocando pedras no monumento do faraó. Nas outras oito, você cuida de manter seu corpo sadio, para carregar mais pedras no dia seguinte, e agradece ao faraó por umas três horinhas de anestesia.

Pão e circo fazem um palhaço subnutrido.

Estou ainda por entender. Se eu aceitar o joguinho que outras pessoas criaram antes que eu nascesse, se partir do que os outros partem e disser que as coisas são como são - embora as coisas só passem a ser quando pessoas as fazem -, preciso me conformar com a idéia de que a natureza me jogou aqui, pronto, igual a qualquer outro, mas há pessoas acima da natureza que me encaixam em uma pirâmide. Na posição de escravo, é claro.

Aceitar que sou um escravo. Aceitar que, em nome de ter direito ao que me foi entregue pronto, preciso devotar todo meu tempo a quem não me deu chongas de pitibiribas - e me toma diariamente.

Talvez estejam certos mesmo. Talvez haja gente naturalmente acima de mim. Talvez o nome certo da grana seja god. Porque nela sim, não há quem não confie. Talvez seja Grana Acima de Deus e do Universo.

Talvez o escultor não tenha usado argila realmente.

Talvez tenha criado o mundo depois do almoço, desenrolando um áspero papel higiênico.

Talvez o tenha delegado a espíritos mais baixos, seus próprios escravos, encarregados de limpar-lhe as sujeiras. Talvez seja como a família real brasileira, que, detentora das vidas de milhões, entregou tudo na mão dos limpa-bostas.

Talvez seja tudo realmente uma pirâmide. Uma pirâmide em que só o que sobe são as pedras. Lá no alto, fica o limpa-bostas da vez, ilhado, comandando os escravos em direção a seu próprio ego.

Talvez seja mesmo um escultor. Arquitetos precisam prezar pela estabilidade constante da obra. Precisam prezar pela harmonia.

Só artistas são inconseqüentes assim.

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domingo, 24 de janeiro de 2010

AMOR


- Posso ser sincera? Não vai me achar kitsch?

- Como assim você diz kitsch? Como é kitsch? É o quê?

- Quando estou com você, até o céu é mais azul.

- Quando estou a seu lado, esqueço todos meus pobrema.

- O bom é que eu nem preciso me esforçar.

- Eu não acredito em esforço. A natureza não se esforça para nada. Para ela, tudo é natural. É nós é que inventamos sub universos toscos e aí precisamos correr atrás de fazer eles funcionar.

- Nossa, você sabe muito.

- Sobre o quê?

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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

ANTICLÍMAX


A vida em sociedade, nos termos atuais, de onde eu vejo, resume-se a uma gincana em que o único prêmio é o dinheiro.

Estudamos em colégios formais até por volta dos quinze anos. Aí começa a fase de decidir que pequeno pedacinho do conhecimento humano vai servir para te definir pelo resto da vida. Você é bom em português? Já pensou em estudar Direito? Não estude Letras, porque professor ganha muito mal.

Você é bom em matemática? Já pensou em fazer Engenharia? Não faça Matemática, porque matemáticos acabam dando aulas em colégios. Você vai acabar tão mal quanto aquela pessoa que, sem outras opções, acabou condenada a ensinar você.

Passado esse momento, vem o fatídico segundo grau, que hoje já tem outro nome e que daqui a dois anos terá ainda outro nome, embora nada mude realmente.

Chegando ao segundo grau, talvez dividam seus amigos em turmas de Humanas, Tecnológicas e Biomédicas.

Você e seus amigos serão divididos e cada um de vocês será objetivamente encaminhado a sua área de saber.

Não que fosse necessária essa compartimentação. O fato é que, depois do segundo grau, você vai encarar um vestibular, algo bastante concorrido. Sendo assim, é bom que você esteja preparado para passar no vestibular referente a sua área.

Entre para o segundo grau e passe três anos, dos quinze aos dezoito, aprendendo apenas o que vai te fazer passar naquelas provas. Esqueça qualquer visão geral, esqueça qualquer esforço para abrir sua cabeça, ganhar alguma perspectiva sobre o mundo: você está ali, durante três anos, pensando no vestibular.

Encerrada esta fase, começa a busca por uma vaga em uma boa faculdade. Se você tiver passado a vida inteira pagando por escolas minimamente decentes, talvez consiga ingressar em uma faculdade gratuita. Feito isso, dispensado de pagar suas mensalidades, você está livre para preparar-se para o pós-faculdade. Não precisa perder tempo com despesas agora. Basta pensar no lucro vindouro.

Uma vez na faculdade, você passará cerca de quatro anos aprendendo o necessário para ingressar no mercado de trabalho. Não será preparado para ser um cidadão, não será preparado para ser um companheiro, não será preparado para ser um crítico, um pensador, um teórico. Você será preparado para tornar-se um técnico, alguém cuja otimização visa apenas ao lucro. Ora, se você estudou até aqui, algum objetivo você tinha e precisa alcançar: a grana.

Por que mais alguém passaria a vida estudando, se não para ser rico? Não é essa a equação? Conhecimento = lucro. Aprendemos o máximo para lucrar em cima dos que não sabem tanto quanto nós.

Se você, por outro lado, veio de um lar que não podia pagar por sua instrução, é provável que ingresse em uma faculdade paga. Neste caso, o lucro fica com o dono da faculdade, cujos filhos estão sendo preparados para cobrar as mensalidades dos seus próprios filhos.

Feito o curso pago, com muito esforço, normalmente acompanhado de um emprego que você precisa manter, mesmo que esse emprego não te acrescente absolutamente nada além de dinheiro - dinheiro que vai para o dono da faculdade -, seu destino será o mesmo daqueles que cursaram faculdades gratuitas: o preparo técnico e objetivo e o mercado de trabalho.

Não há outro motivo para se estudar, além de arranjar um bom emprego, por mais que esse emprego não tenha absolutamente nada a ver com seus interesses, talentos ou aptidões. Aqueles que formatam a sociedade na qual vivemos gostam de dizer que o homem deve se dedicar ao que lhe fala ao coração. Na realidade, porém, sabemos o tamanho da falácia e sabemos muito bem que poucos são os privilegiados que podem realmente dedicar-se ao que lhes interessa.

Concluído seu curso, é a hora de arranjar um emprego. Se conseguir um emprego fixo, parabéns: tudo o que você poderia aspirar dentro desse sistema medíocre já foi alcançado. Se você tem um emprego fixo, basta receber ordens e cumprir pequenas e limitadas obrigações. Fazendo isso, você tem a segurança, a garantia de que estará vivo no mês seguinte.

Empregos fixos são cada vez mais raros. Aqueles mesmos espertos que moldam nossa maneira de viver, que são donos tanto das faculdades quanto das empresas e dos supermercados onde você deposita parte do seu salário, esforçam-se por diminuir cada vez mais suas garantias. Alegam que isso barateia o emprego e o expande em direção a mais pessoas.

Curioso é notar que, ao longo das décadas, as garantias diminuem, mas os contrastes sociais se ampliam e a concentração dos lucros é cada vez maior.

Você já parou para pensar nos efeitos concretos de nosso novo ritmo de vida? Já parou para pensar que, se anos atrás você produzia X, hoje, com a internet, o blackberry, o celular etc. você produz cinco vezes mais e está ocupado quase vintequatro horas por dia?

Você pode achar interessante esse ritmo alucinante. Mas pense: para onde está indo o resultado de tanta produção? Nos últimos anos, sua renda cresceu no mesmo ritmo de sua produção?

Tenho certeza de que não.

Você já percebeu que os valores negociados entre grandes empresas e nas bolsas de valores são de ordem de grandeza absurdamente maior do que os valores que passam por sua mão? Já percebeu que são cada vez maiores?

Em nome de quem você está produzindo?

Moro em um apartamento alugado. Negociei com uma imobiliária (não com o proprietário) o valor de um aluguel. Pediram-me até declaração de renda, extrato bancário, esmiuçaram minha vida até o limite. Tudo acertado, renda comprovada, mesmo assim, uma vez por ano, recebo um documento cínico de uma empresa de seguros que me suga R$ 1.500,00 sem o menor constrangimento.

Na tal declaração de bens que me foi pedida, cheguei a listar bens da família. Valores que ultrapassavam qualquer ordenado de qualquer funcionário daquela empresa. Pela lógica, portanto, seriam eles que deveriam provar-se dignos de negociar comigo.

Mas não é assim. Como aqueles pobres e estelionatários da empresa de seguros vivem do dinheiro que sugam de mim - já que o grosso dos lucros fica com seus patrões - não há constrangimento mesmo. São até capazes de discursar sobre a importância e a legitimidade de sua função.

O dono da imobiliária, que todo ano me põe em contato com esses parasitas, acha natural também: afinal, é um advogado. Estudou por anos, aprendeu que é assim que as coisas funcionam, decorou todas as brechas da lei e já encontrou sua própria e mesquinha maneira de ganhar a vida.

Aí você argumenta tudo isso e vem algum cínico dizer: é assim que as coisas são feitas. Existem setores inteiros da economia que vivem disso. Mude as regras e gere uma enormidade de desemprego no mercado.

Aí você viaja pelo país, vê a enormidade de terras ociosas, vê o povo da Amazônia vivendo bem de pescar, plantar e colher, compara com o estado das favelas nas cidades, com a chamada "violência urbana", e pensa: a quem estão querendo enganar?

Quem consegue me convencer de que, para qualquer um que não sejam os bandidos, a maneira como a coisa é feita hoje gera mais "empregos" do que seriam possíveis caso apenas deixassem as pessoas viver em paz e não se utilizassem de leis cínicas e parciais para negar o que a natureza já apresenta pronto e óbvio?

Quando você sai do primário, você é automaticamente lançado em um caminho que visa a extrair de seu ambiente o máximo de vantagens possível. Você é treinado para ser mais um bandido.

Na tal sociedade em que vivemos, é absurdo matar em nome de Deus. Já em nome do dinheiro... Quem, ainda hoje, é capaz de relativizar o valor da propriedade privada? O valor da vida, já esse, basta citá-lo para parecer um fanático. O valor da compaixão, esse nem se cita mais.

O que vale é a grana.

Voltei de uma temporada na Amazônia. Ainda não consigo pôr para fora tudo o que vi e senti. Ainda estou chocado ao ver que, voltando a São Paulo, o símbolo nacional do progresso, da modernidade, gasto mais dinheiro com aluguel e contas do que comigo mesmo.

É isso mesmo: mais da metade do que ganho por mês é destinado a apenas manter-me aqui.

Mais da metade do que ganho é destinado a manter São Paulo como está.

Na floresta, bastaria pescar um peixe para estar "no lucro". Aqui, se você pesca um peixe, calculam-se juros, riscos, prêmios (os bandidos da companhia de seguros gostam desse termo) e, no fim, você tem um peixe e meio a pagar aos infelizes.

Onde você quer chegar?

Eu confesso que, de minha parte, não sei mais. Não acredito nesta sociedade, não simpatizo com a mentalidade que é criada, não consigo mais assistir à TV, flagro cada mentira das propagandas partidárias gratuitas, lembro de Einstein dizendo, revoltado, que uma das piores invenções do diabo tinha sido os juros compostos - a menina dos olhos dos bancos - e nada me instiga a me esforçar.

Fiz uma faculdade de jornalismo, mas já tenho elementos suficientes para concluir que fui apenas adestrado a mentir, a despistar, a falar do abajur enquanto as cortinas pegam fogo e a garantir a manutenção de um sistema de mentiras.

Eu sou aquele que assina um texto mentiroso e que garante que você vá ler o texto seguinte, no dia seguinte. Meu sonho de formado é trabalhar na única empresa que tem audiência considerável. A empresa que, sozinha, concentra 80% da publicidade do país. E a publicidade, vocês sabem, é o que mantém, sozinho, os lucros e a manutenção dessas empresas. Não é venda de jornal, não é assinante, não é nada: são as empresas que pagam a publicidade e com as quais a direção negocia diariamente.

Em minha turma de faculdade, os mais bem-sucedidos eram aqueles que apareciam na tela da TV. Não que dissessem algo de valor - ou mesmo algo de sua própria cabeça. O valor daquelas pessoas era conseguir tornar-se o rostinho da emissora. Passeie pelos corredores de uma empresa de televisão, converse com os jornalistas-estrelas e surpreenda-se ao descobrir que nem os próprios textos são eles que escrevem. Puxe um aprensentador de telejornal para um canto e faça uma arguição: veja se ele sabe sobre o que está falando.

Ele sabe colocar a voz, sabe que tom de pancake fica melhor em seu rosto, mas a coisa pára por aí.

Armas, petróleo e imprensa. Mensagem hermética. Isso é o que manda no mundo. Um faz as máquinas girarem, outro garante o avanço à força das empresas sobre territórios outros e o terceiro garante o discurso que embasa todo o absurdo.

Pesquisem. Não sou capaz de resumir uma vida de pesquisas a uma leviana frase de blogue. Mas pesquisem. Pesquisem as "fundações" que há por aí.

Armas, petróleo e imprensa.

Estou de volta da Amazônia. Estou em crise. São Paulo perdeu o sentido, assim como uma boa parte do planeta. O lado bom é que estou cada vez mais objetivo. O lado ruim é que estou nitidamente me isolando. Não sei o que vai restar. Não sei, não sei mesmo.

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terça-feira, 19 de janeiro de 2010

VOLTEI DA AMAZÔNIA


Voltei da Amazônia.

Posso dizer que mantive o orgasmo mais longo de minha vida.

Quinze dias?
A eternidade?

Agora estou sentindo os chacras vibrarem, robustos, porém exauridos, como naquele momento em que você vira para o lado e, pedindo arrego, acende um cigarro e volta a pensar no táxi e no dia seguinte.

Depois comento.

Obrigado, meu deus.

Eu tive a prova concreta de que há coisas maiores e mais fascinantes do que nós.
Agora eu sei.
Eu vi.

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domingo, 3 de janeiro de 2010

O ANO DA MARMOTA


Salve o duplo jubileu.


Segundo o novo horóscopo chinês, 2010 podia muito bem ser o ano da marmota.

Dois de janeiro de 2010. Passadas vintequatro horas desde o bom e velho êxtase de mais um Ano Novo, já ouço falar em Carnaval.

Sim, da maneira como vivemos, o ano novo dura sempre vintequatro horas. Depois disso, retomam-se todos os ciclos repetitivos que unem as pessoas em sociedade. Volta-se então ao ano velho de sempre.

Dois de janeiro de 2010. Após invadirem o Iraque e desmantelarem uma cultura que vem desde a Mesopotâmia, o povo iraquiano é governado por uma série de empresas particulares - as mesmas que financiavam o ditador que resolveram enforcar em praça pública.

Dois de janeiro de 2010. A televisão diz que seguranças particulares de uma dessas empresas dispararam contra um aglomerado de iraquianos. Os seguranças foram absolvidos. Legítima defesa. Legítima defesa no país do outro, agindo como polícia em cima do outro. Com o aval de quem?

Ano novo. Ano novo aqui, no Iraque, nos EUA, na televisão. Ano novo para todos. Todo o planeta vivendo a mesma experiência. O dia da confraternização universal.

Em torno de quê?

Você torce para algum time? Talvez torça. Nasceu torcendo para ele? Se tivesse nascido em outro país, torceria para aquele mesmo time?

Mas é seu time, certo? É parte de você. Toda vez que ele ganha, você fica feliz. Toda vez que perde, você sofre. Igualzinho.

Se alguém ameaça seu time (ou seu país), você fica convicto de que precisa reagir. Mesmo que sua reação gere um confronto ainda maior ali à frente.

Como fugir dessas coisas? Como ser elevado, nobre, cristão, pacifista, em um mundo onde você olha em volta e só enxerga agressão?

A resposta a isso já foi dita há milhares de anos, mas parece complicada demais para que o homem comum a compreenda (o homem parece mais afeito mesmo ao deboche):

"seu universo é um jogo de sua consciência".

Isso é coisa de Shiva. Abri o blogue citando a frase. Parece incompreensível, não é?

Será que Shiva dizia que é tudo ilusão? Que este computador que tenho à frente não é real?

Não, não é nada disso.

A coisa é simples: por que você tem medo do terrorista? Porque ele ameaça seu país. Mas por que logo o seu país? O que fez seu país para merecer isso?

Talvez não importe. O que te importa é que é seu país. E dado que há um conflito, é seu papel zelar por que seu lado saia vitorioso.

Ainda que sua vitória deixe milhões de pessoas fazendo beicinho, esperando o momento de revidar, naquele momento, sua vitória valeu a pena.

Agora pense: você sabe que vive em um planeta, não sabe? Você sabe que estamos todos fisicamente ligados, não sabe? Então por que insiste em defender a vitória de um "lado" sobre outro?

Pelo que diabos você está competindo?

Que universo falho e limitado é esse com o qual você se identifica?

E por que não vai além dele?

Dia dois de janeiro e já ouço falar em Carnaval.

Ano passado, dedicado a estudar assuntos gerais, como política, imprensa, história, sofri por 365 dias, tentando encontrar alguma chave que nos tirasse a todos da realidade cada vez mais primitiva que vivemos por aqui.

Sem entrar no mérito de dizer que tudo é conseqüência de algo e que não lamento nem por um segundo pela miséria em que vive a humanidade - miséria causada por sua própria arrogância, que não consegue tratar a própria ignorância como algo a ser combatido - mas sim protegido e mascarado, envolto em paliativos, tornou-se claro aqui que minha aventura pessoal não é a aventura imposta a todos.

Fisicamente, estou aqui, neste lugar maravilhoso, ainda que dominado por seres medíocres que não merecem o paraíso em que nasceram. Se forem adiante na estupidez e acabarem com o oxigênio, meu corpo se asfixiará. Se soltarem mais algumas de suas bombas infernais, meu corpo se esfacelará. Se dominarem os alimentos e me impuserem um regime de trabalho extremo demais para que eu os alcance, morrerei de fome.

Ainda assim, 2010 traz a novidade: eu compreendi a frase de Shiva.

Meu universo é um jogo de minha consciência.

Hoje, meu único objetivo é aproveitar cada segundo de paz que se apresenta para pensar e inventar meu futuro, que, também está claro, passa muito mais por sentimentos do que por idéias. Passa muito mais por experiências do que por conflitos. Passa muito mais por lugares do que por pessoas.

Pessoas passaram a ser como outros seres; como cães, gatos, cavalos, bois... Apenas animais que esforçam-se para manterem-se vivos. Diante de uma ameaça, recuam. Diante do conforto, cedem. Diante do banquete, entopem-se até morrer pela boca.

A diferença entre os bichos talvez resida na famosa razão. Mas essa, ando encarando como uma ausência. Encaro a razão como um sofrimento. Como uma tentativa do homem de alcançar uma plenitude pela qual todos os outros seres parecem já ter passado.

Ano passado, assisti a um filme antigo sobre a vida de Descartes. A uma certa altura da história, um amigo recomendava ao filósofo: "Calvino já dizia que, quando você se dedicar ao que realmente lhe fala à natureza, sua inquietação intelectual vai ceder automaticamente".

Pessoas são corações ambulantes, ainda que narcotizados, carregando cérebros desligados, preguiçosos e auto-indulgentes. São sofredores que chamam de amor as mais egoístas tentativas de assumir a posse sobre terceiros.

São bichos, como eu, ainda que, em sua maioria, desinteressados de evoluir.

No rol das fantasias coletivas, do jogo de consciência que se difunde e ganha ares de senso-comum, já se até abandonou o conceito de evolução.

Para o povo daqui, só o que evolui é o equipamento. É a máquina. O ser humano tornou-se um pretenso deus tão cego, mas tão cego, que é capaz de suicidar-se para dar à luz sua criação. Apenas para afirmar-se Deus. Deus do quê, eu não sei. Já que a matéria já tem seu próprio Deus.

É o século, o milênio da marmota.

Assim como no filme brilhantemente estrelado por Bill Murray, em que todo dia era o mesmo dia, todos em volta parecem não perceber. Como se cada dia que nasce no relógio digital, à cabeceira da cama, fizesse soar a campainha do ponto zero.

O homem dorme e acorda como se houvesse acabado de nascer. Nada retém, nada constrói, nada é capaz de propor.

Ando tentando expor fisicamente o que me parece cada vez mais claro. Dizem que o tempo é uma espiral. Utilizo-me da idéia.

Penso que nossa consciência perfaz ciclos. Ciclos mais abrangentes ou mais estreitos, variam de caso em caso.

Percebo que a maioria das pessoas tem uma consciência que faz ciclos um tanto estreitos.

Como assim?

. a noção de passado delas é mais curta, assim como a sacação de que haverá sempre um futuro cheio de conseqüências para seus atos. Desta forma, ficam presas às surpresas, aos acasos, às coincidências que parecem surgir do nada. São como cães em noite de reveillon. Cada explosão que se ouve é como se fosse a primeira; e cada nova explosão contraria a fé cega de que a anterior seria a última.

Como se diz sobre a invenção da República no Brasil, "o povo assiste bestializado";

. a capacidade para perceber o tédio é menor, já que sua consciência reinicia o ciclo toda hora (já que o ciclo é curto). Sendo assim, fica mais difícil notar as coisas se repetindo e se eternizando;

. a capacidade de obedecer e funcionar automaticamente é maior, já que pequenas tarefas repetitivas acabam se encaixando mais facilmente em seus ciclos de consciência;

. a capacidade para pensar no planeta como um todo é bem menor, já que a consciência lida com esferas mais estreitas, como o "meu" time, a "minha" família, a segurança do "meu" país...

Neste ponto, cito Einstein: "uma mente que se abre para uma idéia nova jamais retorna a seu tamanho original";

. a capacidade para aceitar sistemas e valores é muito maior, já que, com uma consciência estreita, a pessoa não é capaz de "erguer a cabeça acima do nível da água e perceber o que há além". Diante do desconforto, o argumento mais freqüente acaba sendo "este é o menos pior dos males. Antes disso, era ainda pior".

. a capacidade de promover mudanças é praticamente nula, já que, sem noção de passado, de futuro, sem o domínio sobre os processos repetitivos do ser humano, a figura não tem como propor absolutamente NADA.

É o ano da marmota. Preciso alugar aquele filme novamente e lembrar qual era a chave. Porque ficar lidando com as pessoas como se fossem marionetes, papagaios que repetem sempre os mesmos dramas, os mesmos conflitos e os mesmos erros parece realmente uma piada de mau-gosto.

Feliz dia novo.
A cada ano, temos 365 novas chances de começar a viver.

Trezentas e sessenta e cinco vidas por ano.
Basta aproveitar uma delas.
Tatue no corpo para não se esquecer.

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