domingo, 3 de janeiro de 2010

O ANO DA MARMOTA


Salve o duplo jubileu.


Segundo o novo horóscopo chinês, 2010 podia muito bem ser o ano da marmota.

Dois de janeiro de 2010. Passadas vintequatro horas desde o bom e velho êxtase de mais um Ano Novo, já ouço falar em Carnaval.

Sim, da maneira como vivemos, o ano novo dura sempre vintequatro horas. Depois disso, retomam-se todos os ciclos repetitivos que unem as pessoas em sociedade. Volta-se então ao ano velho de sempre.

Dois de janeiro de 2010. Após invadirem o Iraque e desmantelarem uma cultura que vem desde a Mesopotâmia, o povo iraquiano é governado por uma série de empresas particulares - as mesmas que financiavam o ditador que resolveram enforcar em praça pública.

Dois de janeiro de 2010. A televisão diz que seguranças particulares de uma dessas empresas dispararam contra um aglomerado de iraquianos. Os seguranças foram absolvidos. Legítima defesa. Legítima defesa no país do outro, agindo como polícia em cima do outro. Com o aval de quem?

Ano novo. Ano novo aqui, no Iraque, nos EUA, na televisão. Ano novo para todos. Todo o planeta vivendo a mesma experiência. O dia da confraternização universal.

Em torno de quê?

Você torce para algum time? Talvez torça. Nasceu torcendo para ele? Se tivesse nascido em outro país, torceria para aquele mesmo time?

Mas é seu time, certo? É parte de você. Toda vez que ele ganha, você fica feliz. Toda vez que perde, você sofre. Igualzinho.

Se alguém ameaça seu time (ou seu país), você fica convicto de que precisa reagir. Mesmo que sua reação gere um confronto ainda maior ali à frente.

Como fugir dessas coisas? Como ser elevado, nobre, cristão, pacifista, em um mundo onde você olha em volta e só enxerga agressão?

A resposta a isso já foi dita há milhares de anos, mas parece complicada demais para que o homem comum a compreenda (o homem parece mais afeito mesmo ao deboche):

"seu universo é um jogo de sua consciência".

Isso é coisa de Shiva. Abri o blogue citando a frase. Parece incompreensível, não é?

Será que Shiva dizia que é tudo ilusão? Que este computador que tenho à frente não é real?

Não, não é nada disso.

A coisa é simples: por que você tem medo do terrorista? Porque ele ameaça seu país. Mas por que logo o seu país? O que fez seu país para merecer isso?

Talvez não importe. O que te importa é que é seu país. E dado que há um conflito, é seu papel zelar por que seu lado saia vitorioso.

Ainda que sua vitória deixe milhões de pessoas fazendo beicinho, esperando o momento de revidar, naquele momento, sua vitória valeu a pena.

Agora pense: você sabe que vive em um planeta, não sabe? Você sabe que estamos todos fisicamente ligados, não sabe? Então por que insiste em defender a vitória de um "lado" sobre outro?

Pelo que diabos você está competindo?

Que universo falho e limitado é esse com o qual você se identifica?

E por que não vai além dele?

Dia dois de janeiro e já ouço falar em Carnaval.

Ano passado, dedicado a estudar assuntos gerais, como política, imprensa, história, sofri por 365 dias, tentando encontrar alguma chave que nos tirasse a todos da realidade cada vez mais primitiva que vivemos por aqui.

Sem entrar no mérito de dizer que tudo é conseqüência de algo e que não lamento nem por um segundo pela miséria em que vive a humanidade - miséria causada por sua própria arrogância, que não consegue tratar a própria ignorância como algo a ser combatido - mas sim protegido e mascarado, envolto em paliativos, tornou-se claro aqui que minha aventura pessoal não é a aventura imposta a todos.

Fisicamente, estou aqui, neste lugar maravilhoso, ainda que dominado por seres medíocres que não merecem o paraíso em que nasceram. Se forem adiante na estupidez e acabarem com o oxigênio, meu corpo se asfixiará. Se soltarem mais algumas de suas bombas infernais, meu corpo se esfacelará. Se dominarem os alimentos e me impuserem um regime de trabalho extremo demais para que eu os alcance, morrerei de fome.

Ainda assim, 2010 traz a novidade: eu compreendi a frase de Shiva.

Meu universo é um jogo de minha consciência.

Hoje, meu único objetivo é aproveitar cada segundo de paz que se apresenta para pensar e inventar meu futuro, que, também está claro, passa muito mais por sentimentos do que por idéias. Passa muito mais por experiências do que por conflitos. Passa muito mais por lugares do que por pessoas.

Pessoas passaram a ser como outros seres; como cães, gatos, cavalos, bois... Apenas animais que esforçam-se para manterem-se vivos. Diante de uma ameaça, recuam. Diante do conforto, cedem. Diante do banquete, entopem-se até morrer pela boca.

A diferença entre os bichos talvez resida na famosa razão. Mas essa, ando encarando como uma ausência. Encaro a razão como um sofrimento. Como uma tentativa do homem de alcançar uma plenitude pela qual todos os outros seres parecem já ter passado.

Ano passado, assisti a um filme antigo sobre a vida de Descartes. A uma certa altura da história, um amigo recomendava ao filósofo: "Calvino já dizia que, quando você se dedicar ao que realmente lhe fala à natureza, sua inquietação intelectual vai ceder automaticamente".

Pessoas são corações ambulantes, ainda que narcotizados, carregando cérebros desligados, preguiçosos e auto-indulgentes. São sofredores que chamam de amor as mais egoístas tentativas de assumir a posse sobre terceiros.

São bichos, como eu, ainda que, em sua maioria, desinteressados de evoluir.

No rol das fantasias coletivas, do jogo de consciência que se difunde e ganha ares de senso-comum, já se até abandonou o conceito de evolução.

Para o povo daqui, só o que evolui é o equipamento. É a máquina. O ser humano tornou-se um pretenso deus tão cego, mas tão cego, que é capaz de suicidar-se para dar à luz sua criação. Apenas para afirmar-se Deus. Deus do quê, eu não sei. Já que a matéria já tem seu próprio Deus.

É o século, o milênio da marmota.

Assim como no filme brilhantemente estrelado por Bill Murray, em que todo dia era o mesmo dia, todos em volta parecem não perceber. Como se cada dia que nasce no relógio digital, à cabeceira da cama, fizesse soar a campainha do ponto zero.

O homem dorme e acorda como se houvesse acabado de nascer. Nada retém, nada constrói, nada é capaz de propor.

Ando tentando expor fisicamente o que me parece cada vez mais claro. Dizem que o tempo é uma espiral. Utilizo-me da idéia.

Penso que nossa consciência perfaz ciclos. Ciclos mais abrangentes ou mais estreitos, variam de caso em caso.

Percebo que a maioria das pessoas tem uma consciência que faz ciclos um tanto estreitos.

Como assim?

. a noção de passado delas é mais curta, assim como a sacação de que haverá sempre um futuro cheio de conseqüências para seus atos. Desta forma, ficam presas às surpresas, aos acasos, às coincidências que parecem surgir do nada. São como cães em noite de reveillon. Cada explosão que se ouve é como se fosse a primeira; e cada nova explosão contraria a fé cega de que a anterior seria a última.

Como se diz sobre a invenção da República no Brasil, "o povo assiste bestializado";

. a capacidade para perceber o tédio é menor, já que sua consciência reinicia o ciclo toda hora (já que o ciclo é curto). Sendo assim, fica mais difícil notar as coisas se repetindo e se eternizando;

. a capacidade de obedecer e funcionar automaticamente é maior, já que pequenas tarefas repetitivas acabam se encaixando mais facilmente em seus ciclos de consciência;

. a capacidade para pensar no planeta como um todo é bem menor, já que a consciência lida com esferas mais estreitas, como o "meu" time, a "minha" família, a segurança do "meu" país...

Neste ponto, cito Einstein: "uma mente que se abre para uma idéia nova jamais retorna a seu tamanho original";

. a capacidade para aceitar sistemas e valores é muito maior, já que, com uma consciência estreita, a pessoa não é capaz de "erguer a cabeça acima do nível da água e perceber o que há além". Diante do desconforto, o argumento mais freqüente acaba sendo "este é o menos pior dos males. Antes disso, era ainda pior".

. a capacidade de promover mudanças é praticamente nula, já que, sem noção de passado, de futuro, sem o domínio sobre os processos repetitivos do ser humano, a figura não tem como propor absolutamente NADA.

É o ano da marmota. Preciso alugar aquele filme novamente e lembrar qual era a chave. Porque ficar lidando com as pessoas como se fossem marionetes, papagaios que repetem sempre os mesmos dramas, os mesmos conflitos e os mesmos erros parece realmente uma piada de mau-gosto.

Feliz dia novo.
A cada ano, temos 365 novas chances de começar a viver.

Trezentas e sessenta e cinco vidas por ano.
Basta aproveitar uma delas.
Tatue no corpo para não se esquecer.

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