sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

ANTICLÍMAX


A vida em sociedade, nos termos atuais, de onde eu vejo, resume-se a uma gincana em que o único prêmio é o dinheiro.

Estudamos em colégios formais até por volta dos quinze anos. Aí começa a fase de decidir que pequeno pedacinho do conhecimento humano vai servir para te definir pelo resto da vida. Você é bom em português? Já pensou em estudar Direito? Não estude Letras, porque professor ganha muito mal.

Você é bom em matemática? Já pensou em fazer Engenharia? Não faça Matemática, porque matemáticos acabam dando aulas em colégios. Você vai acabar tão mal quanto aquela pessoa que, sem outras opções, acabou condenada a ensinar você.

Passado esse momento, vem o fatídico segundo grau, que hoje já tem outro nome e que daqui a dois anos terá ainda outro nome, embora nada mude realmente.

Chegando ao segundo grau, talvez dividam seus amigos em turmas de Humanas, Tecnológicas e Biomédicas.

Você e seus amigos serão divididos e cada um de vocês será objetivamente encaminhado a sua área de saber.

Não que fosse necessária essa compartimentação. O fato é que, depois do segundo grau, você vai encarar um vestibular, algo bastante concorrido. Sendo assim, é bom que você esteja preparado para passar no vestibular referente a sua área.

Entre para o segundo grau e passe três anos, dos quinze aos dezoito, aprendendo apenas o que vai te fazer passar naquelas provas. Esqueça qualquer visão geral, esqueça qualquer esforço para abrir sua cabeça, ganhar alguma perspectiva sobre o mundo: você está ali, durante três anos, pensando no vestibular.

Encerrada esta fase, começa a busca por uma vaga em uma boa faculdade. Se você tiver passado a vida inteira pagando por escolas minimamente decentes, talvez consiga ingressar em uma faculdade gratuita. Feito isso, dispensado de pagar suas mensalidades, você está livre para preparar-se para o pós-faculdade. Não precisa perder tempo com despesas agora. Basta pensar no lucro vindouro.

Uma vez na faculdade, você passará cerca de quatro anos aprendendo o necessário para ingressar no mercado de trabalho. Não será preparado para ser um cidadão, não será preparado para ser um companheiro, não será preparado para ser um crítico, um pensador, um teórico. Você será preparado para tornar-se um técnico, alguém cuja otimização visa apenas ao lucro. Ora, se você estudou até aqui, algum objetivo você tinha e precisa alcançar: a grana.

Por que mais alguém passaria a vida estudando, se não para ser rico? Não é essa a equação? Conhecimento = lucro. Aprendemos o máximo para lucrar em cima dos que não sabem tanto quanto nós.

Se você, por outro lado, veio de um lar que não podia pagar por sua instrução, é provável que ingresse em uma faculdade paga. Neste caso, o lucro fica com o dono da faculdade, cujos filhos estão sendo preparados para cobrar as mensalidades dos seus próprios filhos.

Feito o curso pago, com muito esforço, normalmente acompanhado de um emprego que você precisa manter, mesmo que esse emprego não te acrescente absolutamente nada além de dinheiro - dinheiro que vai para o dono da faculdade -, seu destino será o mesmo daqueles que cursaram faculdades gratuitas: o preparo técnico e objetivo e o mercado de trabalho.

Não há outro motivo para se estudar, além de arranjar um bom emprego, por mais que esse emprego não tenha absolutamente nada a ver com seus interesses, talentos ou aptidões. Aqueles que formatam a sociedade na qual vivemos gostam de dizer que o homem deve se dedicar ao que lhe fala ao coração. Na realidade, porém, sabemos o tamanho da falácia e sabemos muito bem que poucos são os privilegiados que podem realmente dedicar-se ao que lhes interessa.

Concluído seu curso, é a hora de arranjar um emprego. Se conseguir um emprego fixo, parabéns: tudo o que você poderia aspirar dentro desse sistema medíocre já foi alcançado. Se você tem um emprego fixo, basta receber ordens e cumprir pequenas e limitadas obrigações. Fazendo isso, você tem a segurança, a garantia de que estará vivo no mês seguinte.

Empregos fixos são cada vez mais raros. Aqueles mesmos espertos que moldam nossa maneira de viver, que são donos tanto das faculdades quanto das empresas e dos supermercados onde você deposita parte do seu salário, esforçam-se por diminuir cada vez mais suas garantias. Alegam que isso barateia o emprego e o expande em direção a mais pessoas.

Curioso é notar que, ao longo das décadas, as garantias diminuem, mas os contrastes sociais se ampliam e a concentração dos lucros é cada vez maior.

Você já parou para pensar nos efeitos concretos de nosso novo ritmo de vida? Já parou para pensar que, se anos atrás você produzia X, hoje, com a internet, o blackberry, o celular etc. você produz cinco vezes mais e está ocupado quase vintequatro horas por dia?

Você pode achar interessante esse ritmo alucinante. Mas pense: para onde está indo o resultado de tanta produção? Nos últimos anos, sua renda cresceu no mesmo ritmo de sua produção?

Tenho certeza de que não.

Você já percebeu que os valores negociados entre grandes empresas e nas bolsas de valores são de ordem de grandeza absurdamente maior do que os valores que passam por sua mão? Já percebeu que são cada vez maiores?

Em nome de quem você está produzindo?

Moro em um apartamento alugado. Negociei com uma imobiliária (não com o proprietário) o valor de um aluguel. Pediram-me até declaração de renda, extrato bancário, esmiuçaram minha vida até o limite. Tudo acertado, renda comprovada, mesmo assim, uma vez por ano, recebo um documento cínico de uma empresa de seguros que me suga R$ 1.500,00 sem o menor constrangimento.

Na tal declaração de bens que me foi pedida, cheguei a listar bens da família. Valores que ultrapassavam qualquer ordenado de qualquer funcionário daquela empresa. Pela lógica, portanto, seriam eles que deveriam provar-se dignos de negociar comigo.

Mas não é assim. Como aqueles pobres e estelionatários da empresa de seguros vivem do dinheiro que sugam de mim - já que o grosso dos lucros fica com seus patrões - não há constrangimento mesmo. São até capazes de discursar sobre a importância e a legitimidade de sua função.

O dono da imobiliária, que todo ano me põe em contato com esses parasitas, acha natural também: afinal, é um advogado. Estudou por anos, aprendeu que é assim que as coisas funcionam, decorou todas as brechas da lei e já encontrou sua própria e mesquinha maneira de ganhar a vida.

Aí você argumenta tudo isso e vem algum cínico dizer: é assim que as coisas são feitas. Existem setores inteiros da economia que vivem disso. Mude as regras e gere uma enormidade de desemprego no mercado.

Aí você viaja pelo país, vê a enormidade de terras ociosas, vê o povo da Amazônia vivendo bem de pescar, plantar e colher, compara com o estado das favelas nas cidades, com a chamada "violência urbana", e pensa: a quem estão querendo enganar?

Quem consegue me convencer de que, para qualquer um que não sejam os bandidos, a maneira como a coisa é feita hoje gera mais "empregos" do que seriam possíveis caso apenas deixassem as pessoas viver em paz e não se utilizassem de leis cínicas e parciais para negar o que a natureza já apresenta pronto e óbvio?

Quando você sai do primário, você é automaticamente lançado em um caminho que visa a extrair de seu ambiente o máximo de vantagens possível. Você é treinado para ser mais um bandido.

Na tal sociedade em que vivemos, é absurdo matar em nome de Deus. Já em nome do dinheiro... Quem, ainda hoje, é capaz de relativizar o valor da propriedade privada? O valor da vida, já esse, basta citá-lo para parecer um fanático. O valor da compaixão, esse nem se cita mais.

O que vale é a grana.

Voltei de uma temporada na Amazônia. Ainda não consigo pôr para fora tudo o que vi e senti. Ainda estou chocado ao ver que, voltando a São Paulo, o símbolo nacional do progresso, da modernidade, gasto mais dinheiro com aluguel e contas do que comigo mesmo.

É isso mesmo: mais da metade do que ganho por mês é destinado a apenas manter-me aqui.

Mais da metade do que ganho é destinado a manter São Paulo como está.

Na floresta, bastaria pescar um peixe para estar "no lucro". Aqui, se você pesca um peixe, calculam-se juros, riscos, prêmios (os bandidos da companhia de seguros gostam desse termo) e, no fim, você tem um peixe e meio a pagar aos infelizes.

Onde você quer chegar?

Eu confesso que, de minha parte, não sei mais. Não acredito nesta sociedade, não simpatizo com a mentalidade que é criada, não consigo mais assistir à TV, flagro cada mentira das propagandas partidárias gratuitas, lembro de Einstein dizendo, revoltado, que uma das piores invenções do diabo tinha sido os juros compostos - a menina dos olhos dos bancos - e nada me instiga a me esforçar.

Fiz uma faculdade de jornalismo, mas já tenho elementos suficientes para concluir que fui apenas adestrado a mentir, a despistar, a falar do abajur enquanto as cortinas pegam fogo e a garantir a manutenção de um sistema de mentiras.

Eu sou aquele que assina um texto mentiroso e que garante que você vá ler o texto seguinte, no dia seguinte. Meu sonho de formado é trabalhar na única empresa que tem audiência considerável. A empresa que, sozinha, concentra 80% da publicidade do país. E a publicidade, vocês sabem, é o que mantém, sozinho, os lucros e a manutenção dessas empresas. Não é venda de jornal, não é assinante, não é nada: são as empresas que pagam a publicidade e com as quais a direção negocia diariamente.

Em minha turma de faculdade, os mais bem-sucedidos eram aqueles que apareciam na tela da TV. Não que dissessem algo de valor - ou mesmo algo de sua própria cabeça. O valor daquelas pessoas era conseguir tornar-se o rostinho da emissora. Passeie pelos corredores de uma empresa de televisão, converse com os jornalistas-estrelas e surpreenda-se ao descobrir que nem os próprios textos são eles que escrevem. Puxe um aprensentador de telejornal para um canto e faça uma arguição: veja se ele sabe sobre o que está falando.

Ele sabe colocar a voz, sabe que tom de pancake fica melhor em seu rosto, mas a coisa pára por aí.

Armas, petróleo e imprensa. Mensagem hermética. Isso é o que manda no mundo. Um faz as máquinas girarem, outro garante o avanço à força das empresas sobre territórios outros e o terceiro garante o discurso que embasa todo o absurdo.

Pesquisem. Não sou capaz de resumir uma vida de pesquisas a uma leviana frase de blogue. Mas pesquisem. Pesquisem as "fundações" que há por aí.

Armas, petróleo e imprensa.

Estou de volta da Amazônia. Estou em crise. São Paulo perdeu o sentido, assim como uma boa parte do planeta. O lado bom é que estou cada vez mais objetivo. O lado ruim é que estou nitidamente me isolando. Não sei o que vai restar. Não sei, não sei mesmo.

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2 comentários:

shikida disse...

Olá, Carlos.

Adorei seu post. Três amigas minhas compartilharam ele no google reader.

Acho que sua análise do mundo está certíssima, embora obviamente um tanto pessimista.

Às vezes, tudo o que as pessoas precisam é de um pouco de tempo para elas mesmas. Para juntarem forças e continuarem lutando pelo que elas acreditam.

Talvez vc precise de um pouco de tempo para vc.

O mundo é essa droga aí, mas é por isso que ela precisa que gente como vc tenha esperança e encontre um jeito de ver as pequenas vitórias diárias nas tentativas de melhorar o mundo ou de pelo menos viver decentemente.

Meu consolo é que se vc tem crises e fica indignado, vc está em situação melhor para tentar fazer alguma coisa do que aqueles que aceitaram a hipocrisia do mundo.

Fico feliz que ainda existam pessoas como vc, que questionam.

Carlos Jazzmo disse...

muito obrigado, meu amigo.

muito obrigado mesmo.

fico feliz em contribuir com algo de valor para o universo particular das pessoas.

um grande abraço e namastê,
Carlos.