Deve ter uns três anos, acho, estava brincando com meu violão e pedi a papai do céu.
Puxa, eu daria qualquer coisa para saber cantar. Sério. Eu brinco com música desde que nasci. Coloque qualquer instrumento nas minhas mãos, dê umas duas semanas e volte para conferir se eu já não engano por alguns segundos.
Foi assim com o sax tenor, por exemplo.
No ano de noventessete, dei a mim mesmo um saxofone de presente de aniversário. Digo: dei a mim mesmo ao longo de doze meses.
Comprei o instrumento em um dia, brinquei com ele, viajei para o exterior três meses depois, voltei, toquei mais uma semana e fiz meu primeiro show ao vivo como saxofonista.
Um ano e meio depois, tirei a carteirinha da Ordem dos Músicos.
De maneira alguma estou tirando onda. Tantas são minhas incapacidades diante do mundo real que me reservo o direito de dissertar sobre minhas facilidades.
Tocar sempre foi natural. Tocar, compor... Sim, compor. Sempre foi natural. Tirar música enquanto assisto à TV... Tudo natural.
Agora: cantar é outra coisa.
Minhas memórias mais antigas sobre o canto me remetem de volta ao município de Nova Friburgo, na serra do estado do Rio de Janeiro.
Naquele aprazível logradouro, curtia eu vez em quando minhas férias escolares, dado que eu tinha acesso às instalações militares brasileiras, inclusive ao Sanatório Naval convertido em clube exclusivo da Armada.
Era toda uma colina pertencente à Marinha do Brasil. Sim, no alto da serra.
Ali, eu e dezenas, punhados de cada vez, de jovens, crianças, na verdade, filhos de oficiais confraternizávamo-nos, namorávamo-nos, passeávamos pelo cemitério desativado e vez ou outra tocávamos violão.
Lembro que certa vez me arrisquei a cantar. Lembro que meus amiguinhos silenciaram, eu morri de vergonha e nunca mais me atrevi.
Eu tinha uns... Quatorze ou quinze anos. Tocava guitarra havia uns dois.
Depois dessa tremenda vergonha inicial, nunca mais cantei. Não sou capaz de dizer se todos silenciaram porque fui péssimo. Hoje, inclusive, olhando em retrospecto, acredito que eu tenha me saído bem. Mas a posição de centro do palco simplesmente me travou para sempre.
Ou assim eu pensava.
Tendo a crer que, naquele momento, fui apreciado porque, lembrando-me bem, havia uma menina, aqui chamada de Júlia (nome fictício mesmo), que, linda como só ela, morena, tipo cor de canela mesmo, gostosa em toda sua adolescência, chegou em mim e justo na sauna a vapor. Justo onde eu estava sem camisa, igualmente adolescente, cheio de espinhas e sobrepeso, cabelo em crescimento irregular, e mesmo assim eu acabei por faturar a namorada.
Certamente eu devo ter cantado direito.
Essa namorada, que eu chamo ficticiamente de Júlia, serviu também para inaugurar um padrão que se revelou ao longo dos anos: com Júlia, a fictícia, formei uma dupla. Não era sertaneja, mas era ela quem cantava. Eu apenas tocava.
De Júlia ao Glamourama, sempre formei em torno de mim ou aderi a estruturas musicais que me dispensavam de cantar. Cheguei a compor músicas inteiras e entregar ao amigo ao lado.
Por vergonha.
De qualquer forma, só me lembro de ter sentido vergonha parecida nesta vida uma única vez: ano passado, em São Paulo, quando tentei fazer meu primeiro show sozinho, voz e guitarra.
Esses foram meus dois momentos mais vexatórios na vida.
Cantando em Nova Friburgo, cantando em São Paulo.
Mesmo assim, tendo já vivido trintetrês, tendo aprendido a máxima anônima segundo a qual "se você nunca sentiu medo, vergonha ou dor é porque nunca se dedicou ao que considera realmente importante", insisti e fui em frente.
Na verdade, confesso, mais uma vez na vida, não precisei insistir tanto. Eu vou insistir. Aí sim. Aí estou sendo justo. Mas não precisei insistir.
Nos anos de doismilessete e doismileoito, eu estava em Brasília, trancado, estudando, meditando e... compondo, é evidente.
Dadas circunstâncias muito específicas, eu estava de posse de todo o tempo do mundo para me dedicar às coisas que, havia descoberto, me pareciam realmente fundamentais. Foi nessa onda que voltei a compor de com força.
Compor coisas completamente diferentes das anteriores, como aliás descobri estar expresso até mesmo em meu mapa astral. A reinvenção constante.
Curioso.
Mas estava eu compondo, chegando às raias do
samadhi toda hora, pirando no êxtase de uma simples corda vibrando sozinha, e resolvi ser ousado de uma vez.
Matriculei-me na Claude Debussy, uma escola de música da capital.
Três aulas com uma professora que me lembrava demais minha querida avó - outra aficionada do canto - e eu estava
pronto.
Pronto para encarar qualquer coisa.
Até o show de São Paulo.
Concomitantemente a isso, eu já estava relativamente de posse da emissão mínima suportável de minhas cordas vocais. Eu já era ali capaz de ao menos traduzir em voz as notas que me vinham à cabeça.
Dali para frente, seria apenas praticar. O principal, que era perder o medo de encarar uma parede e emitir um DÓÓÓÓÓÓÓÓÓ com todo o coração, eu já havia superado naquela sala de aula, ao lado do piano desafinado da sósia de minha querida avó.
De formas que, quando resolvi deixar Brasília, rumo a São Paulo, eu já era capaz de entoar ao menos um punhado de mantras de minha autoria.
Um desses foi o que gravei igualmente por brincadeira, no laptop iluminado de Bruno Cardoso, em companhia de Helena, Bruna, Cecília, Luiza e Daniela, minha querida
"Quarta-feira em brasa".
Foi essa mesma gravação que, enquanto eu morria de vergonha no show de estréia em Sampa, percorria o espaço virtual e me rendia o convite.
O convite para que a música adentrasse a trilha sonora do filme
"De Asfalto e Terra Vermelha", de Camila Freitas e Antoine D'Artemare.
Uma coprodução Brasil-França de trintecinco minutos sobre a capitar federar brasileira.
Fui assistir ontem, no Centro do Rio.
O filme é uma obra digna de atenção. Sem me esforçar para parecer isso ou aquilo, digo que a narrativa é a síntese da cidade. É possível conhecer Brasília pelo filme, é possível conhecer o filme por Brasília, é possível conhecer a narrativa pela cidade, vice-versa, os planos são definitivos, os depoimentos merecem minha assinatura embaixo de cada um deles, até a música, sim, a música, serviu para coroar aquela obra como jamais poderia supor.
Esta é a segunda vez em que me vejo relacionado a uma tela de cinema e esta é a segunda vez em que isso me emociona profundamente.
Desta vez, só para maltratar meu coração, era eu
cantando.
Minha voz, meu violão, minha música...
E quando a música entrou, eu achei aquilo tão lindo e demorei uns cinco segundos para perceber que era eu mesmo quem estava tocando.
Essa sensação foi indescritível.
De uma coisa eu sei: posso ter o destino mais cruel que alguém possa imaginar, mas hei de perecer agarrado a um violão, gemendo as coisas baixinho, de um jeito que sempre fez sentido para mim e que, parece agora, faz algum sentido para as outras pessoas.
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