quarta-feira, 14 de abril de 2010
RIO: O DESESPERO URBANO
Essa merece registro.
Saí da Mangueira às duas da tarde. Precisava ir até a Rua México, no Centro, a fim de pagar o aluguel do apartamento. Precisava ir até lá porque o aluguel vencia no dia 5 e o boleto só chegou no dia 9. Por que o atraso? Porque nos dias anteriores a cidade parou e nem o correio entregou a correspondência.
A multa pelo atraso? Azar o seu, cidadão.
Saio da Mangueira às duas da tarde. Precisava também ir até o Recreio. Sendo assim, sabendo do completo caos dos transportes no Rio, achei prudente sair bem cedo. Para não ter erro, fui até a Rua México de táxi. Gastei 15 reais, apenas porque os ônibus demorariam demais. Para escapar do absurdo dos ônibus, só desembolsando um valor sete vezes maior do que o da passagem.
Peguei o táxi e, mesmo assim, levei meia-hora para cobrir uma distância que levaria dez minutos.
Na Rua México, no prédio da imobiliária, apenas um elevador funcionando. Dez minutos na fila. E todos quietos, olhando para baixo. Subi, cuidei da coisa e desci.
Cheguei à Cinelândia às dez para as três da tarde.
Sentei no ponto, acendi um cigarro e fumei-o inteiro.
Peguei então um ônibus em direção ao Recreio, já que um táxi chegaria talvez aos cem reais. Cem reais me pareceram um pouco demais para conseguir cumprir meus compromissos em paz. Então peguei o ônibus.
Entrei no ônibus às três da tarde. Cheguei no Recreio às cinco e meia. Sim, foram duas horas e meia dentro do ônibus, do Centro ao Recreio.
E não, não havia chuva nenhuma para que nossos governantes e nossa grande imprensa pudessem culpar. O Rio de Janeiro está assim mesmo.
Confesso sem culpa que tive muita vontade de chorar. Oceanos de carros particulares, todo mundo preso por todo mundo, Mercedes-Benz engarrafados ao lado de fuscas, ao lado de ônibus, de táxis, de motos. Todo mundo preso.
Na Barra, ainda outra tortura: a quantidade de voltas que o ônibus dá deixa mais do que claro que os itinerários atendem basicamente à sanha de lucro das empresas, e não às necessidades dos cidadãos. Surpresa nenhuma, em uma cidade (um país) completamente controlado por máfias. Todos sabem que todas as linhas de ônibus do Rio de Janeiro são monopólios de apenas uma empresa. No Rio, há diversas empresas de ônibus, mas elas não competem entre si. Sim, é um cartel. Sim, é uma bandidagem total.
Finalmente, cheguei a meu destino, no Recreio, às cinco e meia da tarde. Não adiantou ter ido. A pessoa que eu deveria encontrar foi-se embora às cinco em ponto.
Sim, foram duas horas e meia dentro de um ônibus à toa.
Resolvi poucas coisas no Recreio e comecei a caminhar pela rua, deserta, a não ser por carros particulares engarrafados. Nem asfalto decente o lugar tem, apesar da infindável quantidade de condomínios de luxo que se erguem a cada dia. Bom, mas nada demais: se nem rede de esgoto esses empreendimentos de luxo possuem... Jogam as fezes dos emergentes direto nas lagoas... Aliás, asfalto para quê? Calçada para quê? Quem anda a pé por ali, a não ser as empregadas domésticas?
Depois de alguns minutos sem avistar qualquer ônibus, eis que surge um daqueles famosos "frescões". Fiz o sinal.
O preço da passagem? Nove reais e cinqüenta centavos. Sim, certos ônibus custam R$ 2,35, enquanto outros custam R$ 9,50. O critério? Ah, vá: você não sabe que todas as coisas no mundo custam simplesmente o máximo que o dono do negócio se vê capaz de cobrar?
Pois então. Nove reais e cinqüenta centavos. Sim, o preço era esse. Procurei pelo cobrador. Não havia cobrador. O dono da empresa se vê no direito de cobrar quase dez reais por uma passagem e ainda demite o cobrador.
Sem cobrador, a cada pessoa que embarcava, o motorista parava, contava o dinheiro, dava o troco, passava a marcha e recomeçava tudo a 1 quilômetro por hora.
É um absurdo, mas é compreensível: maximizar lucros, minimizar custos. Além disso, um cobrador desempregado é um novo motorista em potencial. Assim, além de concentrar mais dinheiro em suas mãos, o empresário pode prescindir de aumentar o salário dos motoristas.
É óbvio: um exército de cobradores desempregados aumenta bastante a demanda por emprego, o que faz o valor dos salários, segundo a lógica demoníaca do "livre comércio" (hahahahaha! Livre!)... Ai, ai. Nem consigo terminar a frase.
Em suma: se há um monte de motoristas em potencial querendo um emprego, o dono da empresa simplesmente não precisa aumentar salário nenhum! Não está satisfeito com seu emprego de motorista? Dane-se. Tem quem queira.
Agora são sete e meia da noite. Depois da volta no frescão, conduzido por um motorista que esfregava em minha cara que não aceleraria nem um quilômetro a mais, já que atendia aos horários estipulados pela empresa, consigo chegar em casa.
Hein? O que quero dizer com tudo isso? Não sei. Acho que quero dizer que hoje fiquei por um fio de simplesmente cair no choro. Em público.
Mas já que estou aqui, vou narrar também minha ida ao trabalho.
Oito horas da manhã. Onde está o ônibus? Não passa.
Até que passam dois ao mesmo tempo. A linha 474 tem esse cacoete mesmo. Passam dois ônibus juntos, e sempre pela pista de fora. É uma gracinha deles.
Perdi ambos os ônibus e precisei pegar um táxi. Normalmente, essa viagem custa simbólicos (!) R$ 25. Calcule vintecinco reais multiplicados pelos dias úteis do mês. Depois compare com o salário que o governo do estado me paga. E depois ria, é claro.
Chegando a meu destino, a Mangueira, reparo que o taxímetro já está em trinta reais. E olha que a tabela já mudou mais uma vez. Trinta dizia o taxímetro. A tabela já dizia trintepoucos.
A vinte metros de onde eu pararia, arranho a garganta e dirijo-me ao motorista.
- amigo, não me leve a mal, mas seu taxímetro está funcionando direito?
O cara congelou.
- por quê? qual o problema?
- o problema é que faço esse caminho sempre e, ao final, dá R$ 25.
- ah, então está bom. paga R$ 25 mesmo.
Ou seja: taxímetro? pfff...
Conto ainda mais outra, essa ocorrida com um amigo de um amigo, que me contou em detalhes, mas que pode ser ficção também. Tem até personagem.
Jorginho gosta de fumar um baseadinho. Não conhece traficantes, não tem contato com essa gente e acaba pedindo que outro amigo, mais moreno, mais camuflável em meio à pobreza afrodescendente, suba o morro e faça o serviço por ambos.
Jorginho estava trabalhando e recebeu um telefonema do amigo, que avisava não ter conseguido a erva.
Combinaram então de encontrar-se perto de onde eu trabalho, ali, na Mangueira.
Encontraram-se diante da quadra da escola de samba. Conspiraram um pouco e decidiram acessar uma outra entrada da favela. No caminho, foram abordados por um carro da Polícia Militar.
- boa tarde. os senhores estão portando alguma substância entorpecente?
Jorginho, sempre educado, respondeu.
- não, senhor. não temos nada não. houve algum problema?
- bem, não têm nada aí? posso descer e revistar?
- pode sim, mas o senhor vai perder seu tempo. não temos nada.
Diante disso, os policiais resolveram deixar quieto e partiram adiante.
Alguns minutos depois, voltavam mais uma vez.
- é que ficou uma dúvida. os senhores se importam se forem revistados?
O que você diria, amigo? Sob a mira de uma metralhadora.
Pois Jorginho nem titubeou, desprovido de narcóticos que estava.
- podem revistar. fiquem à vontade.
Desceram, revistaram ambos e encontraram um pequeno baseado no bolso do amigo de Jorginho.
- já começou a aparecer! agora nós vamos proceder para a delegacia e seu amigo vai ser enquadrado no artigo 28. o senhor vai servir de testemunha.
Jorginho, que não é do crime e nem da polícia, franziu a testa.
- o que é o artigo 28?
- posse e bla bla bla.
- puxa vida, o senhor vai mesmo desgraçar nossa vida por causa desse baseadinho?
- por gentileza, entrem na viatura.
Entraram no carro dos policiais. Algumas voltas sem sentido e o policial vira-se para trás.
- vocês querem ir para a delegacia?
A resposta veio em uníssono.
- não...
- então vamos ver como podemos resolver isso.
Jorginho aguardou, mas seu amigo logo entendeu.
- quanto você tem aí, Jorginho?
- vinte reais.
Jorginho tinha sessenta reais, mas não era pai de ninguém.
- beleza, tenho vinte também. quarenta reais resolvem para os senhores?
Em silêncio, o policial apanhou os quarentas reais e guardou no bolso.
Não, não liberou Jorginho e o amigo imediatamente. Antes disso, para surpresa de ambos, abriu o porta-luvas da viatura da polícia, pegou uma quantidade de maconha que, no mercado das favelas, custaria dez reais e a vendeu por quarenta.
Sim, vendeu-a a Jorginho e ao amigo. E vendeu pelo quádruplo do preço.
Jorginho e o amigo então desceram, com a maconha vendida pelo policial nos bolsos, entraram em um bar, dividiram a erva discretamente, como dois cavalheiros discretos, e seguiram cada um para sua casa.
Pronto: este é o Rio de Janeiro de verdade. Curtiram?
Boa noite.
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