sábado, 29 de maio de 2010

A FAMOSA VOZ DO CORAÇÃO

Carlos,

deixe de ser teimoso.

Você já aprendeu que fiar-se em qualquer coisa externa a você para alcançar alguma forma de felicidade é abrir mão de uma plenitude que sempre esteve aí; é tratar a si mesmo como um aleijado, como uma prótese de alguma outra coisa.

Você já aprendeu isso. Passa o tempo inteiro encarando um mundo que não pensa assim, conhece muita gente que discorda disso, mas, mesmo assim, quando se dá conta, está flagrando o mesmo princípio se repetir ou com você ou com as pessoas em volta.

Você já aprendeu. Você nasceu do jeito que nasceu, não há nada errado ou insuficiente em você, você tem o corpo sadio, tem uma mente que se abre sem maiores dificuldades, tem um temperamento pacífico - quando está no seu elemento - e tem afeto de sobra para si e para distribuir.

Você já aprendeu isso tudo. Então por que insiste em desafiar a si mesmo?

Quando você disse a si mesmo "qualquer coisa externa", era realmente "qualquer coisa" externa. Então compreenda que "qualquer coisa" que você decida ignorar nesse sentido vai fatalmente vir carregadinha de karma.

Há certas coisas que você prefere continuar fazendo. Talvez por não se achar pronto para abandoná-las, talvez por não se ver ainda tão corajoso quanto poderia ser. O fato é que você escolhe. Você as elege. Então procure abrir essa exceção apenas para aquilo cujo karma - já conhecido - te parece contornável. Já não é o ideal, mas, admito, você não é apenas idéia. Parte de você é realmente coisa e deve ser cuidada como qualquer coisa de valor.

Já sobre outras coisas, você sabe perfeitamente que, ainda que decida tratá-las com alguma dose de cinismo ou distanciamento, vai dar com a cara no muro. Porque vai desvirtuá-las por completo. Vai fazer com que elas percam o sentido. Então não se lance em direção a nada que vá anular o grande estado que você já alcançou e que, a cada esquina, a cada distração, tem realmente ajudado de alguma forma as pessoas que estão à sua volta.

É amor que você quer? É realmente amor? Está faltando amor aí?

É segurança? Você está inseguro? E conhece algo nesta vida que seja garantia real de segurança; algo diferente de traçar seu caminho de maneira atenta e jamais deixar de brandir a chamada arma da atenção? Você conhece algo externo a si mesmo que possa te garantir essa tal segurança?

Você vai insistir no erro de esperar por algo externo?

E vai esperar isso tudo de alguma pessoa, justo quando cada um está suficientemente sufocado por seus próprios dilemas? Vai eleger uma pessoa para conversar sobre como o mundo inteiro é torto? Essa pessoa, por algum acaso, será externa ao mundo?

Carlos,

você já sabe disso tudo.
Procure não dar tanta bobeira. É seu coração que te pede.

Por favor.

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sexta-feira, 28 de maio de 2010

MESTRE EM PLANOS PARALELOS

Não nasci ontem.

Nada do que eu conclua hoje sobre a vida e o mundo pode ser encarado como um surto, um rompante, um relâmpago surgido do vácuo, uma invenção sem pai nem mãe, uma luz que se acende na mais sinistra escuridão.

Tem anos, trintetrês, mais exatamente, que venho formando minha cabeça e minha visão de mundo. Ao longo desse tempo, descobri que o natural, para mim, enquanto tantos se esforçam para cercar-se de bens materiais, de provas concretas de seus sucessos e avanços, é investir em valores internos.

Sou meu próprio projeto, minha própria ambição, meu próprio patrimônio. Sou pai e filho de mim mesmo, assim como sou pai e filho do universo mágico, metafísico, diante do qual me curvo e que reverencio o tempo inteiro.

Hoje o dia começou com uma notícia interessante: um francês ouviu uma música minha na internet e pediu para inseri-la em um filme que deve ser exibido tanto no Brasil quanto na França. Um filme sobre Brasília, a ser exibido em festivais de artes dos dois países.

Autorizei, é claro.

Sendo assim, enquanto passo os dias no morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, serei ouvido e apreciado pelos círculos mais aristocráticos do velho continente.

Brasília já tinha me servido para muito além do que eu poderia esperar de qualquer cidade. Além dos inúmeros eventos estranhos que coro só mesmo em pensar em dividir com os amigos, ainda me trouxe a experiência mágica de ver a mim mesmo na tela do cinema.

Ali era o também francês Henri, personagem do livro/peça/filme de Clarah Averbuck. O livro chama-se "Máquina de Pinball". O filme, dirigido por Murilo Salles, chama-se "Nome Próprio". O ator era francês, mas, teoricamente, o personagem era eu. Ir ao cinema assistir a uma versão ficcional de mim mesmo já tinha sido impressionante. Só sobre essa experiência, já seria capaz de falar por dias a fio.

Mas agora é algo um tanto diferente: é minha voz mesmo, é meu violão colorindo a película. É o fruto de dois anos de reclusão estampado nas telas, servindo de trilha sonora para aquela mesma cidade que me inspirou a canção e tantas outras coisas.

Brasília, Brasília. Brasília que não me sai do pensamento, Brasília que não me sai do blogue, Brasília que me invade por todos os lados, mesmo por aqueles que, teoricamente, não passariam por lá.

Abaixo, segue um texto que submeti à Universidade Federal Fluminense, tentando me inscrever em uma pós-graduação em educação a distância. Esse curso, imagino por agora, pode ser a chave que faltava para que eu possa me mandar para o interior do país e viabilizar todas as outras coisas sobre as quais venho falando ad nauseum.

O tema da redação era "minhas perspectivas de atuação no ensino a distância".

Enjoy.


"O filósofo grego Platão costumava dividir tudo o que existe em dois mundos bem específicos: o mundo das coisas e o mundo das idéias. Quando trilhamos o caminho do conhecimento, é natural, colocamos cada vez mais ênfase no mundo das idéias. Dotados de conhecimento, não apenas podemos nos descolar mais facilmente da realidade dada e criar outra mais apropriada, como ainda deixamos nós mesmos de nos entendermos como coisas, passando a compreender que, assim como as idéias, estamos conectados e influímos diretamente nas vidas uns dos outros.

O conhecimento tem o poder de alterar o dia a dia das pessoas, de fazê-las viverem melhor. Tem o poder de fazê-las conhecerem melhor a si mesmas e à realidade que as cerca. O conhecimento fornece ao indivíduo autonomia, de forma mais imediata e menos nociva do que a sanha pelo acúmulo de bens materiais, que perde de vista o outro e o equilíbrio de todo o sistema. Com acesso a educação, fica mais fácil percebermos que estamos inseridos em um sem-número de ambientes, seja o político, definido por leis que tomam uma faixa contígua de terra como um Estado, um país, seja o humano, explicitado pelo dom comum a todas as pessoas - o dom de evoluir, de expandir sua consciência -, seja o natural, que, em um mundo cada vez mais afeito às criações do homem, passa a ser encarado como empecilho para sua independência.

O educador Darcy Ribeiro já disse que, ao final da vida, contava inúmeros fracassos. Entre esses, estava a tentativa de promover educação de qualidade para o povo brasileiro, no qual contava não apenas o homem dito civilizado, mas ainda nossos irmãos silvícolas, aos quais pretendia alfabetizar. Foi-se dizendo-se fracassado em ambos os intentos. Mas foi-se declarando que cada fracasso daqueles, pela tentativa honrada, dedicada, honesta, representava um de seus maiores sucessos.

O presidente Juscelino Kubitschek tomou posse defendendo a bandeira da interiorização do desenvolvimento no país. Em nome disso, criou-se uma nova capital, montou-se toda uma estrutura administrativa, essa capital já tem até seu próprio povo, sua própria cultura florescente, mas nota-se à primeira olhada tratar-se, até agora, de uma ilha de prosperidade material em meio ao bom e velho sertão, entendido no sentido de terras inexploradas, vocábulo caro aos antigos senhores de engenho brasileiros.

Brasília foi criada sob a bandeira da expansão do conhecimento, da razão, da cultura e da civilização pelo território nacional. É chegada a hora de pôr o projeto em prática. Temos milhares de quilômetros povoados por brasileiros que passam a vida à margem de seu próprio país, de seu próprio povo, e que, em frágeis tentativas de inserção, acabam por ocupar as favelas, as periferias, as zonas cinzentas, sempre ostentando o status de cidadãos de segunda classe. Pois a solução para o contraste que se observa entre regiões, entre estados, entre bairros de nosso país é justamente a classe, o nível, o ano letivo.

Diz o antigo ditado: se Maomé não vai à montanha - e em nosso caso, o percurso e as condições de viagem de Maomé, no interior do país, até a montanha acadêmica não são as mais favoráveis - que vá a montanha até Maomé. A apropriação pode parecer um tanto religiosa, mística, afeita a planos improváveis, mas é passada em ambiente virtual, pela internet, algo que o ser humano conseguiu empreender no sentido de acessar justamente planos alheios à realidade material. Através da internet, pode-se passar tudo o que não é coisa. Através da internet, como talvez dissesse Platão, transmite-se, apresenta-se e insere-se o homem no mundo das idéias. Inserido o homem no mundo das idéias, altera-se naturalmente o estado do mundo das coisas".


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terça-feira, 25 de maio de 2010

ORBIS PARUM, OMNIMODUS INFINITUM


O espírito em Brasília, o corpo na Amazônia, as havaianas nas bordas de flores do mar de Iemanjá, cá em Copacabana.

As preocupações desta vida.

rio Solimões, aldeia tikuna


"Apesar do fato de que somos um fluxo em transformação incessante, interdependentes com outros seres e com o mundo inteiro, imaginamos que existe em nós uma entidade imutável a que devemos agradar, proteger, defender. Um olhar mais atento sobre si mesmo revelará que isso não passa de pura ficção" - budismo tibetano (Nyingma Pa).


"Once you have the View, although the delusory perceptions of samsara may arise in your mind, you will be like the sky; when a rainbow appears in front of it, it’s not particularly flattered, and when the clouds appear it’s not particularly disappointed either. There is a deep sense of contentment.

You chuckle from inside as you see the facade of samsara and nirvana; the View will keep you constantly amused, with a little inner smile bubbling away all the time" - Dilgo Khyentse Rinpoche (Vajrayana).


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domingo, 16 de maio de 2010

SÓFOCLES DESERTOR


- Decifra-me ou devoro-te.

- Decifrar-te é devorar-me.

- Decifra-me ou devoro-te.

- Decifra-te a ti mesma. Já estás a me devorar.

- Decifra: qual é o aninal que, pela manhã, tem quatro patas, à tarde tem duas e, à noite, tem três patas?

- Essa é fácil: o animal é o homem. Primeiro bebê, depois adulto, ereto, e, por fim, apoiando-se em uma bengala.

- Tens certeza disso?

- Não eu, mas tu. Acreditas que um bebê é um quadrúpede, e não um deus em potencial; vês o homem feito como arrimo de sua própria sorte; enxergas o ancião como um animal defeituoso. Miras na pedra, contemplas a areia; não consideras o vento, o tempo, o calor e as benesses do sol.

- Decifraste enfim o enigma. Hei de devorar-me a mim mesma.

- Coisa nenhuma. Tal charada propõe-se a falar sobre mim, mas nada diz sobre ti, ó, esfinge.

- Decifra-me ou devoro-te.

- Insistes baseada em capricho, em franca desonestidade? Já logrei o mais difícil, que foi decifrar a mim mesmo. Segue meu exemplo. Pediste que a decifrasse e apresentaste um enigma sobre mim. Que pensas? Acaso és reflexo meu?

- Decifra-me ou devoro-te.

- Ah, então pedes por desespero. Podes devorar-me a carne, mas suplicas diante do espírito.

- Decifra-me ou devoro-te.

- Não existes sem mim, ó, esfinge. És pedra temperada pela vaidade de teu artesão.

- Decifra-me ou devoro-te.

- Devoras de qualquer maneira, bruteza.

- Bruteza? Temo o tempo, no entanto. Temo o vento. Temo o calor.

- De certo; a eles não podes devorar.

- Decifra-me ou devoro-te.

- Pede ao tempo. Pede ao calor. Fores apenas capaz de enxergá-los.


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O CAMINHO DA CARNE


Pelo lado feminino, a paixão é a ilusão da maternidade.

Amor sempre rima com dor.
Paixão rima com ilusão.

Amor não é aquilo que se chama amor.
Amor é amar a quem te dá as costas.
Amar quem te ama é amar a si mesmo.
Já é muito, vantagem pra outro patamar.

Decifra-me ou deixa pra lá.
Decifra-me ou deixa pra lá.

A esfinge enxerga o próprio umbigo.
Enquanto o herói assiste àquilo, está tudo mais do que muito bem:
ambos olhando para o mesmo lugar.

Desbrave-o, atente para o umbigo fazendo florir vontades imprevisíveis.
Atente para a mãe atônita diante dos espasmos involuntários do cordão.
Serpenteando, o oráculo dos sentidos, condutor misterioso da consciência do casal.

Até que o herói, de fome, sente o próprio umbigo doer;
cai de joelhos, flagelado, novamente sozinho em si.

Criança que chora é duas coisas: criança sua é problema seu.
Criança dos outros é problema e ponto.

Doeu o umbiguinho, foi? Tem mãe não, menino fraco?

Umbigo ligado a umbigo. Enquanto a mulher se sente mãe, cuida como se houvesse o cordão.

Pelo lado feminino, a paixão é a ilusão da maternidade.

A mulher apaixonada é como a ovelha que amamenta o filhote do boi.

Tudo é conexão. O casal são pólos conectados.
Quando a conexão falha, seja de lá para cá, seja de cá para lá,
só há duas coisas a fazer:

o certo era só contemplar.
Veja a natureza operando, separando os grãos de matéria;

mas você força pra ver convergir.
Segure em minha mão, pule para o fluxo de cá.

Transforma-te desta vez que, na próxima, eu faço o esforço.
Para tentar controlar o que, na realidade, é o que me compõe.

Decifra-me ou deixa pra lá
Decifra-me ou deixa pra lá.

A mulher ideal? Qualquer uma.
O homem ideal? Qualquer um.

O fruto está sempre lá.
Não é preciso a extração por meio de ferramentas.
As raízes do fruto escapam pelas órbitas.
Captam a dor, o amor e a flor.

O estado ideal do homem?
Precisa de tempo. De vida. De atenção.
O estado ideal da mulher?
Mesma coisa. Trabalho.

Seguindo o caminho da carne, somos bichos atendendo a hormônios.
Bichos sofridos no peito, ocupando a cabeça com discursos que levam séculos para dizer que discursos são perda de tempo.
Bichos com poder de compra. E com poder de descarte.

Temo a era da reciclagem.
Contemplo o desgaste de todo o material.
Desgaste, embrutecimento, couraças e mais couraças.

Proteger o bichinho interno. Mais frágil que sua armadura.

Decifra-me ou deixa pra lá.
Decifra-me ou deixa pra lá.

O padeiro abre a porta do forno e extrai um negro monolito.


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segunda-feira, 3 de maio de 2010

TREISMIUIUM


- olha, filho. Nova Idade Média. olha esse holograma aqui.



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