domingo, 14 de fevereiro de 2010

SAMADHANA E A MAÇÃ


O óbvio já foi dito: o mais difícil de ser flagrado é o óbvio.

Quando eu era bebê, a melhor forma de me fazer relaxar e dormir era sair comigo de carro ou em qualquer outro meio de transporte. Quanto mais longo fosse o passeio ou a viagem, melhor para mim.

Minhas melhores memórias de infância referem-se a viagens e à casa de meus avós.

Quando eu era bebê, não gostava de comer. Gostava de coisas gostosas, mas não compreendia a necessidade daquilo.

Desde sempre, escolhi minhas próprias roupas e dizem que sempre soube combiná-las.

Aprendi a cantar, do meu jeito de bebê, antes de aprender a falar.

Aprendi a dançar antes de aprender a andar.

Desde muito pequeno, meus melhores amigos eram os filhos dos porteiros, das empregadas, e os meninos de rua que eu levava para dentro do colégio.

Quando eu era moleque, ia para a escola com brincos adesivos na orelha, só porque achava maneiro, e distribuía autógrafos para os colegas.

Aos onze anos de idade, comprei um exemplar de "Frankenstein", de Mary Shelley, com minha pouca mesadinha. Li o livro em uma semana. Reli em mais outra. Na terceira, eu era especialista em desenhar com excelência o rosto de Frankenstein, que vinha na capa do livro, em qualquer lugar, a qualquer hora.

Ainda hoje sou capaz. Qualquer hora te mostro.

Aos sete, se não me engano, já tinha feito um curso de "escritor" na Casa de Ruy Barbosa, no Rio de Janeiro.

Também aos onze anos de idade, avançado no inglês e com ouvido afiado para o som do francês, resolvi aprender o hebraico e a cultura judaica. Fui rebatizado - já que era batizado no catolicismo -, fiz bar mitsva, estudei o assunto por uns quatro anos. Abandonei a vida judaica também por reflexão e sentimento, ainda que fosse um mero garoto de quinze.

Aos quatorze, comprei uma guitarra e, desde então, jamais me afastei da música.

Aprendi outros instrumentos e sempre volto àquele onde comecei.

Passei a adolescência lendo e prestando atenção à vida.

Aos dezessete anos de idade, a única faculdade que me imaginava cursando era Filosofia.

Fui à frente no jornalismo porque aquilo me pareceu o meio-termo entre meus interesses e o "mercado".

Durante a faculdade, estive o tempo inteiro envolvido com música e com grupos de estudos.

Todas as vezes em que me desviei do jornalismo, fosse por vontade ou por força das circunstâncias, acabei lidando com educação, normalmente educação de gente mais pobre, com programas sociais diversos e com o mercado editorial. Livros.

Fui criado no meio das meninas. Minhas brincadeiras mais freqüentes na infância foram salada-mista, verdade ou conseqüência, gato mia, menino-pega-menina, menina-pega-menino, marco polo. Havia ainda a variação "menina-pega-menino-e-faz-o-que-quiser", jogo inventado no saudoso colégio Paula Barros e que nunca mais vi em lugar nenhum.

Nunca mais, até chegar à idade adulta e descobrir que é assim que as coisas realmente são. Pega menino e faz o que quiser.

Perdi a virgindade aos dez anos de idade, com uma empregada doméstica, mas jamais profanei qualquer coleguinha de escola. Apesar da estréia precoce, passei a adolescência inteira encostado na parede, sentindo calafrios na hora da música lenta.

Todas as minhas paixões, do primeiro ao vigésimo ano de vida, foram muito mais platônicas do que carnais.

Aos vintedois anos, reencontrei uma prima que não via desde os seis e por quem havia sido apaixonado. Apaixonei-me novamente e passei cinco anos com ela. Posso dizer, de certa forma, que foi com ela que perdi a virgindade novamente. Porque foi a primeira vez em que trepei amando alguém. Durante muito tempo, todas as namoradas posteriores tiveram certeza de que, um dia, eu voltaria a namorar a prima.

Aos vintequatro anos, declarei-me a minha musa. Sim, tenho uma musa desde antes do ano 2000. E até hoje é a mesma. Namorei com ela por dois meses e trouxe pela vida um bilhão de dúvidas sobre a relação artista-musa.

Quase nasci na Inglaterra. Alguns meses de diferença. Minha primeira viagem ao exterior me ensinou que, em outras partes do planeta, até o ar é diferente. Veio daí uma paixão irrefreável por apenas sair e respirar. Sair para cada vez mais longe e respirar cada vez mais fundo.

Lembro de cada cidade que já visitei na vida, ainda que não lembre dos nomes de algumas.

Tenho sonhos recorrentes há talvez trintedois anos.

Sonho que sou capaz de voar. E mesmo nos sonhos, existe a consciência de que voar é algo que eu sempre fiz. Quando o sonho começa, existe a certeza de que sou capaz daquilo.

Vôo de algumas maneiras diferentes: às vezes é como se eu nadasse no ar. Outras vezes, preciso de um travesseiro voador debaixo de mim, como se fizesse bodyboarding - esporte que pratiquei por anos e que hoje me traz saudades. Em breve, volto ao mar. Ainda aprendo a surfar.

Em outras vezes, vôo batendo os braços, como se fossem asas. Mas é sempre uma habilidade inata e é sempre algo que, estranha e angustiantemente, as outras pessoas dos sonhos não são capazes de fazer.

Um dado curioso é que, em certos sonhos, é parte importante da trama a reação das outras pessoas ao meu ato de voar. E é nítido também, nessas vezes, que não vôo para causar impressão. Vôo porque vôo. Assim como pássaros cantam e pessoas prestam atenção umas às outras.

Cada vez que sonho que estou voando, estou um pouco mais livre. O grande vilão de meus sonhos, o grande inimigo que minha consciência me traz à noite - quando não sonho lembrando das violências que sofri na infância, algo bem mais concreto - são os fios de alta tensão.

Isso mesmo, o único fator que, por vezes, transforma meus sonhos em algo de pesadelo é o medo de, em pleno vôo, chocar-me com os fios de alta tensão. Isso nunca ocorreu. Nunca levei um choque. Ainda assim, é quase irritante ter o ar cortado por aquelas estruturas medonhas. Se vôo alto demais, perco contato visual com a cidade. Se vôo baixo demais, tenho que ficar calculando entre os fios e os carros que passam pelas ruas.

Noite passada, eu estava voando novamente. Voando e batendo os braços. Desta vez, estava nu. Não era um manifesto, ainda que as outras pessoas estivessem vestidas, e eu não me senti nem um pouco constrangido. Assim como voar, estar nu pareceu mais do que natural.

Nesse último sonho, lembro-me que conversava com os outros de dentro de uma piscina. Eu dentro, eles do lado de fora. Era da piscina que eu levantava vôo e era pela janela da área da piscina que eu voltava, quando me cansava de voar.

Meus vôos variam de altitude. Poucas vezes sonhei flutuar por sobre o quarto. Muito poucas. As cenas interiores de vôo normalmente ocorrem em salões de pé direito altíssimo, como teatros municipais, ministérios e prédios assim.

Normalmente, são vôos ao ar livre. Ou por sobre as cidades - as que conheço e as que não conheço - ou sobre a vegetação. Noite passada, tirei um cochilo sobre a copa de uma frondosa e verde árvore. Dali, desci novamente para a piscina. Nu.

Há muitas vezes em que sonho com lugares em que nunca fui. E há muitas vezes em que chego a lugares e comento mesmo em voz alta: "já sonhei com isto aqui".

Lugares; não situações. Lugares físicos. Cidades, prédios, esquinas.

Meus pesadelos recorrentes também costumam ser padronizados: estou morando na rua, sob alguma marquise, sentindo-me completamente abandonado e refém de uma existência de bicho sofrido. Depois que, por força das circunstâncias, aprendi a ganhar o hábito de me desfazer sistematicamente de bens materiais e de relações viciosas, esse pesadelo ocorre cada vez menos.

Família já ocupou mais meus sonhos. Primeiro, eram as cenas de violência pura e simples. Depois, vieram aqueles pesadelos em que você tenta correr, mas não consegue.

No momento seguinte, vieram as cenas de luta. Eu simplesmente descia a porrada em quem havia me agredido. Mas assim, em um nível de deixar no chão mesmo, engasgando-se com o próprio sangue. Essa fase foi a mais sofrida. Quando sonhava assim, acordava suado, cansado, envenenado pela raiva.

Depois, passei a sonhar com discussões verbais. Longas, intermináveis, exaustivas e inúteis. Até que passei aos sonhos em que eu apenas estalava a língua e dizia coisas como "você é meu pai (ou minha mãe, tia, etc.). Não devia me tratar assim. Não devia tratar a si mesmo assim. Não devia tratar ninguém assim".

Até que parei de sonhar com isso.

A cada dia ou ano que passa, fico mais certo de que, ao longo da vida, o ser humano vai perdendo contato com algo que nasceu pronto e vai incorporando valores e experiências que o deformam para algo sem nome, carente de significado e lugar.

Tanto pior será a experiência - e o caminho de volta - quanto menos propício for o ambiente onde ele for gerado e criado.

Eu sei quem sou. Eu sou quem sou. Se bem que ter descoberto isso foi o mais difícil que fiz até aqui.

Não sou Deus. Não sou como Deus. Não perco meu tempo com isso.

Ontem ocorreu-me a idéia clara de que imagem e semelhança é muito diferente de identidade total. Compare sua identidade a sua carteira de identidade. Você já viu alguma 3x4 que fosse... perfeita?

Assim como a fotinho tosca, somos irradiações de algo. No caso, do inominável.


Querem saber o sentido da vida? Vou arriscar:

devolver a maçã à árvore.


Tomá-la, se for o caso, estudá-la incansavelmente, até perceber que o paraíso vale muito mais a pena.


(leia: "Os seis tipos de riqueza e os quatro pilares do conhecimento", Sri Sri Ravi Shankar).

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