segunda-feira, 23 de novembro de 2009

NÃO DÁ PARA ESCONDER O QUE EU SINTO POR VO-CEARÁ

Muita gente boa concorda que encontrar o equilíbrio da corda da vida, aquele estado em que pouca coisa te desafina ou te faz vibrar no susto, seja de estresse, de raiva ou de frustração, é um bom objetivo a ser alcançado.

Sim, porque você viaja por alguns dias e lembra-se facilmente de que o planeta é um só e estava aí muito antes do papo-furado todo; são apenas as pessoas, imbuídas de seu esclarecimento limitado, que tentam organizá-lo de maneiras diversas e acabam afogando-se em pobremas. E surgem daí as neuróticas rotinas urbanas das quais acreditamos só poder fugir viajando para outros lugares. Lugares que têm suas próprias neuroses, mas que visitamos na posição de café-com-leite, quase imateriais, acima do bem e do mal.

Reparem que todo turista tem uma certa aura divina. É porque ele não está ali a trabalho. Durante aquele curto período de tempo, o turista é o alforriado. Ele não corre sob a batuta do relógio e da média dos preços no mercado. O turista paga a mais para esquecer-se de como vive realmente. O turista é o escapista contemporâneo, temeroso de perder a disciplina justo onde não deveria haver alguma.

O turismo é a negação da viagem. É a negação da jornada. É o retalho sobre a colcha perfeita, mas de cuja cor não se gosta muito.

Ontem mesmo, a caminho do aeroporto para cá, o taxista dizia: já estão vendendo carro a duzentos reais por mês... E nem tem mais rua pra isso tudo...

Mas pois é, vai usar a razão, a bendita e frenética busca da saciedade intelectual, o gatilho da malandragem estreita, o fruto da incapacidade de perceber e se harmonizar com o todo, e você concorda: tem mais é que vender carro mesmo. Se eu fosse o dono da empresa, venderia carro mesmo. E se tivesse aquele emprego sensacional, trocaria de carro todo ano. E se fosse empresário influente, chamaria empresa de automóvel para construir a nova capital. Se fosse sócio desses caras, trocaria de casa, de carro e de destino no ano-novo.

Só não trocaria de horário, nem de engarrafamento, nem de assalto e nem de neurose. Viajaria uma vez por ano em escala mais luxuosa, mais divina aos olhos de terceiros. E mergulharia de volta nas neuroses do dia-a-dia, teoricamente compensadas pela próxima viagem, pelo próximo carro, pela nova promoção na empresa.

Ficaria engarrafado dentro de um helicóptero. Daria voltas sobre o céu de Congonhas, sem conseguir aterrissar. Seria transferido até Guarulhos e pegaria um ônibus que traria escrito Gol linhas aéreas do lado de fora. Ficaria preso na Marginal Tietê. Se estivesse de táxi, não poderia fumar. Apenas os vapores saudáveis do rio que corta a cidade de Serra. O clima milagroso de Serra.

Ah, sim, sem contar que estaria cada vez mais distante daquele que vai direto aos fins. E diante de tanto sacrifício, de tanto sentimento de dever, passaria a condenar o viajante com cada vez maior veemência. Como ele pode e eu não posso?

Quem lhe deu o direito de ser livre? Isso não consta no código de defesa do consumidor.

Sacrifício e recompensa. Cada vez maiores. O contrário do equilíbrio. Como uma corda que vibra cada vez mais pesadamente, tocando cada vez mais o alto e cada vez mais o baixo, até que a droga de escolha seja a cocaína, o horário natural seja a madrugada e a torcida sincera seja para que o circo pegue fogo.

Já que, dentro do peito, a lona realmente já lambeu. Luft.

Aí você pensa com a cabeça de pensar, lucra com o espírito de lucrar e, em um belo dia, sai às ruas só com o coração ligado, com preguiça de tudo. Sai e se surpreende com como sua cidade é poluída, cinzenta, e com como até mesmo os políticos que emergem dali já vêm viciados em remédios, cheios de olheiras, te convencendo a abrir mão de suas liberdades individuais em nome de um bem coletivo pelo qual ele é o primeiro a não prezar.

Pisca o olho, pensa se aquele é mesmo o lugar certo para você, e lembra-se da véspera, em outra cidade, que poderia facilmente ser apenas um bairro mais tranqüilo de sua própria cidade - já que estão se tornando todas iguais.

É, malandro. This ain't no country for no old man.

É nessas horas que eu repenso a possibilidade de manter um blogue, justo quando o silêncio me parece cada vez mais conveniente. Calar e sentir. Assistir às peças se encaixando, cada uma em seu lugar, gerando a dor e o atrito que cada uma delas inevitavelmente gera ao tombar em seu espaço. O karma coletivo, o homem se debatendo contra si mesmo, mas chamando de homem o outro, como se fosse um esquizofrênico socando o próprio reflexo no espelho.

Este é o homo rationalis. O Narciso louco que soca a própria imagem. A dúvida nada mais é do que o defeito no ideal platônico da perfeição. Para o homo rationalis, a razão é algo que se presume ter e que causa dor toda vez que se percebe incompleta. E incompleta sempre será, pois é a própria expressão da incompletude. Da aresta. Da desafinação.

E é por isso que trago para cá a imagem mais interessante que esta cidade me proporcionou desde que retornei das Minas Gerais. A foto é uma réplica da criatura que brincou comigo agora, do outro lado da grade da loja.

Não chegamos a conversar. Apelidei-o Ceará. Por mais que estivesse em São Paulo, o olhar e as feições não me enganaram nem por um segundo: remeteram-me direto de volta a Aracati, Melancias, Canoa Quebrada e todas aquelas acolhedoras freguesias.



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