quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010
O MITO DA CAVERNA
Quero chamar Platão e José Saramago. Vamos brincar de Zorba, o grego, trocar idéias e caminhar descalços por aquela porra toda.
No dia em que o escritor conseguir realmente pôr para fora toda a náusea, toda a ânsia, toda a inquietude e o desejo de contribuir, terá escrito sua última linha.
Sou compositor e sei que música é diferente. Música, você vai buscar lá em cima. Já a literatura, essa vem lá de baixo.
Diferente de outros, o escritor só vai em frente porque fracassa.
Fracassa diariamente. Fracassa a cada ponto final. A cada frase. A cada palavra ou letra.
Existe um ensinamento hindu que é assim:
imagine que estejamos juntos, à noite, sob um céu estrelado. Imagine que eu me vire para você e diga "olhe aquela estrela".
Não vai adiantar que eu aponte a estrela. Você não a verá. Você vai perguntar "qual delas?".
Agora imagine que eu diga "olhe aquela estrela, em cima daquele galho de árvore". A estrela não tem nada a ver com a árvore. Uma está no céu, outra está na Terra. Ainda assim, com a referência da árvore, talvez você veja a estrela.
Muito se fala e nada se diz.
É tanto artista e tão pouca arte. É tanto discurso e tão pouco conteúdo.
Difícil preocupar-se com a estética de um texto, quando seu coração está voltado apenas para seus efeitos. Difícil rasgar o peito e oferecer um pedaço de seu coração a cada amigo, a cada amigo desconhecido, a cada irmão, a cada semelhante.
Já aprendi há tempos: mesmo a maior das verdades, quando ouvida de fora, transforma-se apenas em mais um conceito.
Falar para quê? Para ser visto de fora como escritor e, aí sim, ser capaz de dar algum valor a mim mesmo? Passei dessa fase.
Para nutrir a ilusão de que, organizando idéias racionais, estou cada vez mais próximo da verdade? Passei dessa também.
Para apresentar-me ao mundo e, a partir de minha obra, reunir em volta de mim as pessoas que podem ser mais convenientes ou que podem servir para justificar o que penso, oferecendo uma imagem no eterno espelho do ser humano? Já afoguei Narciso nessa.
Tudo o que o ser humano precisa ler, ouvir ou compreender - para além do que é capaz de reunir na própria experiência da vida, como sabem bem os shivaístas - já foi dito por meu bom e amado Platão.
A imagem que segue foi extraída da wikipedia, assim como o pequeno texto. Não a uso por acaso.
Antes de mais nada, acredito que posso me privar de comentar com o quê, no chamado "mundo contemporâneo", a imagem se parece.
Em segundo lugar, ter ido à wikipedia - e não a fontes mais pedantes - em busca desse texto serve para mostrar a todos que o conhecimento está disponível. Deixar sua consciência nas mãos de terceiros e lidar com o mundo sob a ótica do "é assim que as coisas são" passa a ser apenas uma opção.
Você pode optar pelo que quiser. É uma pena, no entanto, que sua ignorância, seu não-saber, force minha própria vida um pouco para baixo.
Sim, infelizmente, estamos todos amarrados. Talvez, no fundo, resida aí meu egoísmo em dividir as coisas que já sei ou já aprendi: estou tentando melhorar meu próprio universo.
Talvez você faça parte dele. Talvez não. Talvez seja "apenas" um leitor. Talvez eu faça parte de seu universo, mas não o contrário.
De qualquer forma, depois de descobrir em boa medida quem sou realmente, passa a ser opção minha só ocupar lugares limpos e dourados nas consciências dos que me cercam.
Segue Platão, com um extrato da obra A República.
O mito da caverna, por Platão
Sócrates – Agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoços acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.
Glauco – Estou vendo.
Sócrates – Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que os transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.
Glauco - Um quadro estranho e estranhos prisioneiros.
Sócrates - Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e de seus companheiros, mais do que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte?
Glauco - Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida?
Sócrates - E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo?
Glauco - Sem dúvida.
Sócrates - Portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam?
Glauco - É bem possível.
Sócrates - E se a parede do fundo da prisão provocasse eco sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles?
Glauco - Sim, por Zeus!
Sócrates - Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos fabricados?
Glauco - Assim terá de ser.
Sócrates - Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?
Glauco - Muito mais verdadeiras.
Sócrates - E se o forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram?
Glauco - Com toda a certeza.
Sócrates - E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?
Glauco - Não o conseguirá, pelo menos de início.
Sócrates - Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homens e dos outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos. Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu do que, durante o dia, o Sol e sua luz.
Glauco - Sem dúvida.
Sócrates - Por fim, suponho eu, será o sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal qual é.
Glauco - Necessariamente.
Sócrates - Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com os seus companheiros, na caverna.
Glauco - É evidente que chegará a essa conclusão.
Sócrates - Ora, lembrando-se de sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram?
Glauco - Sim, com certeza, Sócrates.
Sócrates - E se então distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em último lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia?
Glauco - Sou de tua opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de viver dessa maneira.
Sócrates - Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: Não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol?
Glauco - Por certo que sim.
Sócrates - E se tiver de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo?
Glauco - Sem nenhuma dúvida.
Sócrates - Agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar, ponto por ponto, esta imagem ao que dissemos atrás e comparar o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna, e a luz do fogo que a ilumina com a força do Sol. Quanto à subida à região superior e à contemplação dos seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível, não te enganarás quanto à minha idéia, visto que também tu desejas conhecê-la. Só Deus sabe se ela é verdadeira. Quanto a mim, a minha opinião é esta: no mundo inteligível, a idéia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de reto e belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública.
Glauco - Concordo com a tua opinião, até onde posso compreendê-la.
(Platão, A República, v. II p. 105 a 109)
.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
2 comentários:
'É tanto artista e tão pouca arte.'
Pior do que a não ter consciência é tê-la e guardá-la na gaveta.
Gostei daqui!
obrigado, dona Natália.
fique à vontade. : )
um beijo!
Postar um comentário