sábado, 16 de outubro de 2010

A ERA DO DESILUMINISMO


O problema não é o bolo. O problema é a fôrma do bolo.

A humanidade pega um bolo que está pronto e tenta encaixá-lo em uma fôrma definida arbitrariamente.

Valeu a tentativa, podemos chamá-la de tentativa da razão, mas...

sobra bolo.

Aí o que sobra de bolo é tratado como se fosse um problema, quando, na verdade, o problema é a ineficiência da fôrma.


Vêm daí nossos problemas com o que chamamos de relacionamentos. Qual a contradição entre amar alguém e amar uma terceira pessoa? Como é possível que, para manifestar e comprovar meu amor por você, eu precise deixar de amar e passar a mesmo declarar meu desamor por aquelas ou aqueles que amei anteriormente?

O problema é a fôrma.


Vêm daí também, dessa ineficiência da fôrma, nossos problemas sociais todinhos. Viaje de avião pelo planeta e veja com seus próprios olhos que não faltam espaço, recursos e condições naturais para toda a espécie humana. Imensos oceanos verdes vazios, pontilhados por centros urbanos que, vistos de cima, mais parecem veias vermelhas e brancas oscilando entre pequenas estrelas amarelas, azuis e brancas.

Bonito, mas nitidamente desequilibrado. Pequenas fôrminhas enfiadas dentro de um mesmo imenso bolo gigante, eis as grandes cidades cravadas na superfície da crosta terrestre.

Sobra bolo.

O problema é que nosso atual modo de produção concentra o ser humano em núcleos abarrotados e insalubres.

Além, é claro, de crer-se no direito de expandir-se para todos os centímetros do planeta. Só há alternativa enquanto o modelo avança sobre outros territórios. Tudo é questão de tempo até que tudo faça parte do mercado, da indústria.

Tudo.

Tiram-se as terras de milhões, fruto de algum Testamento de Adão, que deu a posse do planeta a esses ou aqueles, e usa-se o discurso de que grandes mega empresas serão capazes de gerar "empregos" para boa parte daqueles que, antes, poderiam tranqüilamente viver por si próprios.

Pior ainda, aqueles que vêm e tomam conta de tudo usam ainda o discurso de que não há necessidade de uma entidade acima deles, como o Estado, para regular atividades que o ser humano é capaz de empreender por si só.

Onde afinal, sendo honestos, se encaixam essas pessoas? Sendo racionais e nem por um momento canalhas, qual a função sincera desses que vêm e tomam para si tudo o que há?

O problema é a fôrma.

E enquanto sobrar bolo, a sobra será vista como um empecilho. Um empecilho humano, por exemplo. Gente demais no planeta.

E chamam isso de iluminismo. A fôrma acima do homem.

Leonardo da Vinci não sobreviveria ao mundo que criamos.

O problema é a fôrma.

Quando se operou a Revolução Francesa, que, junto com a Industrial, inaugurou nosso atual estilo de vida, os teóricos iluministas já estavam todos mortos.

Foram citados, aplicados e pervertidos ao belprazer daqueles homens que chegaram aos postos mais relevantes naquele momento. Ainda que estivessem vivos Rousseau - o mais radical -, Voltaire e Montesquieu, no entanto, estaríamos ainda presos a uma das várias possíveis maneiras de se encarar a razão, a racionalidade, isso que se alega indispensável ao avanço do homem.

Um renascentista, por exemplo, que fosse ao mesmo tempo matemático e poeta, físico e compositor, inventor da bicicleta e da Mona Lisa, seria capaz de suicidar-se em um emprego formal ou em um transporte coletivo de massa que atendesse ao lucro desse ou daquele monarca. Qual a função de um renascentista, afinal? A de um pedreiro é bem clara.

Da Vinci não sobreviveria a um mundo regido pela fôrma da razão aliada ao progresso científico, identificados necessariamente como um avanço, como o único caminho a ser seguido. Máquina acima do homem. Homem acima do homem. Espaço acima do homem. Recursos acima do homem.

Vivemos uma caricatura do iluminismo.

Vivemos o desiluminismo. Que mesmo que tome o sentido inverso, será ainda uma fôrma insuficiente.

Podemos seguir por séculos citando exemplos do mesmo fenômeno.

O problema é a fôrma.


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