terça-feira, 22 de dezembro de 2009

THE TWILIGHT ZONE


Sou daqueles insanos que acreditam ser possível conversar com Deus.


Não aqueles papos verbais de pergunta e resposta, mas sim questões sinceras, que surgem da própria experiência com a vida, e que são elucidadas pela própria vida, basta que estejamos atentos. Tem gente que fala em "sinais". Deixo a terminologia aos que ainda não sacaram que vocabulário é o que menos importa.

Ano passado, resolvi aprender um pouco sobre mapa astral. Não sou capaz de dizer que creio ou não naquilo. O importante é que acredito ter entendido a lógica por detrás.

Se você entende algo de música, sabe o que é um acorde. Um acorde é um conjunto de notas que, reunidas, resultam em uma outra nota, composta, cheia de sutilezas.

Acordes têm tônicas. Um acorde de dó maior tem o dó como tônica. Tem ainda o mi como uma terça maior (se fosse menor, seria o mi bemol), um sol como quinta, e pode ter uma sétima, por exemplo, sendo um si ou um si bemol.

Quando você pega um acorde maior e diminui meio tom da terça, ele se transforma em acorde menor. Existe uma frase, em uma letra de um jazz malandro, que explica bem o que isso significa: "there's such a change from major to minor everytime you say goodbye".

O que a frase diz é que toda vez que a figura se afasta, o humor do compositor torna-se triste. Um acorde menor é, em princípio, triste. Um maior é alegre. Isso é ciência mesmo; peça para um amigo demonstrar.

Muito bem. Agora troquemos notas musicais por pessoas. Pense em dois amigos muito próximos. Mesmos gostos, mesma aparência física, apenas um senso de humor diferente. Fulano é bem leve e simpático, como um acorde maior, e Ciclano é também simpático, embora tenha um certo sarcasmo que sempre arranha um pouco. Uma certa amargura que sempre o torna um tanto contrito.

Algo como uma quinta diminuta.

Um mapa astral nada mais é do que uma reprodução do céu no momento em que nascemos. A idéia é que a posição dos astros compõe acordes também, embora, em princípio, não sejam acordes sonoros.

Em princípio? Sim... Basta que se atribua um valor musical a cada astro, a cada planeta, assim como um valor para cada casa do mapa, e você tem uma música pessoal.

Se seu mapa difere de quase todos os outros, isso é apenas um reflexo do fato de que você difere dos outros. E assim, atribuindo-se valores musicais a cada caractística sua, determinada pelo mapa, você tem sua canção astral.

O engraçado é que Hermeto Paschoal já teve essa sacada também. Ou algo bem parecido.

Ano passado, passei algum tempo aprendendo sobre os astros. E uma das coisas que percebi foi que minhas maiores dificuldades na vida estavam estranhamente expressas ali. Aprendi até sobre o valor de Júpiter e Saturno. Em termos simples, Júpiter atrai e Saturno afasta.

Quando falo em afastamento, tenho a consciência de que mesmo nossas características mais horrorosas são parte nossa. Sendo assim, são algo que deve ser examinado com cuidado, e não apenas ignorado ou temido.

Quando você descobrir o que te diz a posição de Saturno em seu mapa, não fuja. Não se esconda, não opte por dizer que é tudo besteira e, principalmente, não corra como um louco para os braços de Júpiter. Porque Saturno cobra a conta.

Ter vindo para São Paulo da maneira como fiz foi algo ousado. Analisando meu mapa, um irmão que hoje está em Brasília - quase que trocou de lugar comigo - me avisou:

"se eu fosse você, no ponto em que está, iria para algum lugar onde há arte, música, poesia, movimento, e voltaria logo depois, com os olhos fixos em suas certezas. Não se afaste de sua rotina de asceta. Se você for em direção a Júpiter, vai encontrar pessoas saturnianas".

Dito e feito. Após aprender que, em meu mapa, Júpiter está junto com meu ascendente, juntei mais informações e descobri que, teoricamente, minha porção física, material, imediatamente reconhecível pela sociedade, seria algo que me traria vantagens. Segundo o mapa, posso confiar em minha personalidade mais superficial para ganhar destaque. Além do fato de que aquela posição de astros indicava um caráter de auto-didatismo.

O que é verdadeiro também.

Sendo assim, caso eu mergulhasse de cabeça em meus encantos mais imediatos, talvez seguisse-se a isso um breve período de total euforia, sucedido por um bem mais longo de profundo sofrimento. Como acontece toda vez que resolvo ignorar a dureza que está sendo manter-me aqui e decido cair de cabeça na música - que foi o que me trouxe. Sempre que faço isso, ou fico doente depois, ou surge um louco imprevisto que me atrasa o trabalho, ou os contratantes têm dor-de-dente e só me pagam depois de dois meses... É estranho, mas, toda vez que creio estar por cima da carne seca e, estudadamente, me coloco como um arrogante com o caminho livre, surge algum imprevisto.

Quando faço o contrário, quando recuso a diversão mesmo quando talvez pudesse desfrutá-la, deixando as obrigações acumularem-se um pouco para o dia seguinte, tudo volta a funcionar como mágica. Sou acordado para receber dinheiro, trabalhos outros aparecem, mulheres gostosas se oferecem, é como o sonho do pica-pau. Mulheres, dinheiro, iate...

Certa vez, ano passado, ainda em Brasília, eu estava meditando. Sábado à noite e eu estava em casa, trancado - ou nem estava ali realmente.

Meditei, parei e liguei a TV. A programação tinha tudo a ver. Assisti um pouco e fui descendo os canais. Cheguei ao canal 3, que passava um filme caseiro em que apareciam amigos meus. Assisti ao filme até o final, imóvel, tomado pela estranha sensação de estar vendo de olhos abertos um dos vários destinos que me aguardavam pela vida.

Se eu quisesse, poderia fazer a curva e vir para Sampa, atrás do pequeno fragmento de realidade que flagrei em filme. Se preferisse, poderia ignorar o que vi e me manter onde estava, privilegiando outras partes da minha personalidade, compondo minha música de uma determinada maneira, sonhando com Paris, com a Suíça, assistindo à mágica ser feita pela TV.

Voltei ao canal original. Pensei por alguns minutos, assistindo a um programa de entretenimento em que um certo malandrinho de banda de rock exibia uma bela e recente tatuagem de flor-de-lótus no peito, cantando sobre o Retorno de Saturno.

A flor, vocês sabem, simboliza a beleza nascendo do lodo. A elevação que se consegue através do ouvir, contemplar e meditar, abrindo mão de distrair-se com as monstruosidades que o ser humano resolveu chamar de vida.

Assisti por alguns minutos e resolvi voltar ao canal 3. O filme começava novamente.

Optei por vir. Não por impulso, não por misticismo, mas por ver concluída uma centena de reflexões. Então apenas vim.

Chegando aqui, tudo se revelou como mágica. Saí para procurar apartamento e acabei no bairro japonês, sendo recebido como um filho por um idoso senhor grego chamado Christos. Quase fui morar lá. Além de Christos, talvez eu fosse o único ocidental naquele bem-cuidado cortiço. O grego quase pediu que eu ficasse ali. Quando cumprimentei-o em sua língua natal, ele prontamente me dispensou de qualquer documentação ou depósito-fiança. Apenas perguntou se eu tinha problemas com a lei. E confiou em minha resposta, apertando-me a mão e beijando-me a bochecha.

Recusei o convite porque já tinha planos. Em outro bairro, havia um prédio que me interessava.

Vim procurar um apartamento para alugar neste prédio aqui e o encontrei de primeira. Na verdade, ainda que esta seja uma cidade e uma região bastante concorrida, no dia em que vim procurar apartamento, havia simplesmente cinco unidades vagas. Bastaria que eu escolhesse uma.

Visitei os cinco. Acabei escolhendo um, ridiculamente mais barato do que os outros e estranhamente voltado para um jardim secreto, nos fundos de uma mansão vizinha, onde, apesar da extrema proximidade à Avenida Paulista, o que vejo é o topo das copas das árvores, os passarinhos que não param de cantar por um segundo sequer e as belas antenas de TV, réplicas da Torre Eiffel, iluminadas de cobre, de ouro, de prata.

Deixei minha casa de vidro, na capital, diante de um pequeno jardim, sobre a copa das árvores, e caí em algo bastante parecido, se bem que exatamente debaixo da antena de TV que me apareceu naquele sábado, na abertura do tal programa. Não era mais Paris; apenas as réplicas da Torre - três réplicas diferentes, que vejo de qualquer ângulo da casa. Não era a Suíça também, estampada na foto de viagem que eu deixava sempre sobre minha cabeceira candanga, mas era o Edifício Suíço.

Vim parar exatamente no ponto físico que vi pela TV, naquele sábado.

Cheguei aqui e envolvi-me emocionalmente com a mesma amiga que aparecia no tal filme. Cheguei aqui e arranjei exatamente o emprego que profetizei a um amigo que poderia conseguir: escrever em casa e enviar por e-mail. Cheguei aqui e encontrei este apartamento. Aluguei-o.

Aluguei-o e trouxe minhas poucas coisas. Chegando aqui, descobri que não havia luz elétrica. Chamei eletricista, porteiro, a coisa toda. Ninguém decifrava o enigma. Por que apenas minha casa não tinha luz? Fomos consultar alguns registros do prédio e descobrimos que este apartamento não existia.

Cheguei a ouvir a pergunta: "o senhor tem certeza de que seu apartamento tem este número? Não existe este apartamento no prédio".

Seguiram-se duas semanas. Fiz um longo périplo pela administração paulista, até descobrir que o apartamento não tinha registro na companhia elétrica, nem na prefeitura, e ninguém acreditava que eu estivesse morando aqui.

Fiquei a um fio de ter de provar que eu mesmo era real.

Depois de alguns dias, o enigma foi resolvido: antes de mim, havia um rapaz morando aqui. Este rapaz, que ninguém soube localizar, não usava eletricidade. E esse rapaz desocupara o imóvel na mesma semana em que eu, em Brasília, decidi vir para cá.

Que tal?

Uma das reflexões que me ocorreram em Brasília, por conta do mapa astral, foi a seguinte:

certo. Então eu tenho alguns talentos inatos, algumas dificulades concretas em certas áreas da vida, e, até aqui, tenho me saído bem. Já percebi que certas coisas a que me dedico, embora ainda não tenham sido as coisas que me falam mais fundo ao coração, têm trazido bons resultados.

Ora, se meus talentos periféricos têm sido reconhecidos e recompensados, se por toda parte há algum louco que me considera diferente ou especial em algum sentido, o que aconteceria caso eu resolvesse investir no centro de mim mesmo?

Sim, porque já descobri que sou, entre outras coisas, um artista. Não sou um banqueiro, por exemplo. Mesmo assim, sou relativamente ótimo em guardar e economizar minha grana. O que ocorreria então, caso eu decidisse investir na arte e em outros assuntos igualmente centrais para mim?

É isso o que estou vivendo.

Ontem, mesmo três quilos acima do peso ideal, mesmo com um dente quebrado, mesmo sem ter dormido o necessário na véspera, fiz um trabalho de modelo.

Pois é. No mundo de hoje, uma das profissões mais cultuadas. Algo que diferencia as pessoas comuns de uma casta fisicamente superior. Uma casta que, em uma sociedade rasa como a nossa (ou a deles?), é realmente um verdadeiro Olimpo. Gente bonita, descolada, invejada, cobiçada, que aparece na mídia, que tem um endosso da indústria para sentir-se bem. E eu ali.

Acordei às seis da manhã, arrastei-me para baixo do chuveiro e tomei um táxi até Pinheiros. Chegando à agência, conheci mais dois companheiros, além da produtora. Um deles chamava-se Marco, tinha 26 anos, psicólogo, muito quieto e observador. No final do dia, pegou meu telefone porque é um baixista procurando um guitarrista. E eu sou um guitarrista sem baixista.

O outro era o Cláudio. É sobre ele que vou me alongar.

Alguns minutos depois, apareceu Douglas, 20 anos, vendedor e igualmente gente-fina. Não foi preciso absolutamente nada para que os três tornassem-se meus novos amigos, assim como todos com os quais tratei.

Da produtora, em Pinheiros, entramos em uma van e seguimos para apanhar o fotógrafo, a maquiadora e todos os assistentes. Já ali, duas boas surpresas: assim que nos viu, a maquiadora fixou os olhos em mim. Fixou e não os tirou. Por alguns momentos, minha espinha congelou. Dias antes, a produtora havia pedido que eu não tirasse minhas longas e vastas barbas. Disse textualmente: "você foi aprovado de barba". Ali, no entanto, o olhar da make-up girl me dizia que eu seria obrigado a tirá-la. Foi divertido trocar olhares por dois minutos e brincar de conhecê-la e de adivinhar o que ela queria dizer.

O fotógrafo foi a segunda surpresa. Profissional, anos de carreira, uma das maiores estrelas da revista Playboy. Pois é, depois de namorar uma belíssima playmate e de brincar sobre estágios na revista, agora eu estava no papel do objeto.

Depois de bastante engarrafamento - São Paulo entrou em colapso; é só a população que vive em negação, hipnotizada pelo ritmo modorrento -, chegamos à locação.

Belíssima mansão na Granja Viana. Não conhecia aquele pedaço e confesso que não curti. A casa, sim, era um oásis, no primeiro e escaldante dia de verão, mas a localidade lembrou-me os condomínios absurdos de Brasília, pequenas Mecas da auto-indulgência construídas no meio do nada. Detestaria morar ali. Prefiro uma cobertura interessante em algum prédio bem-localizado. Ou então uma casa no campo mesmo. Esse meio-termo da burguesia entediada é que não me pega de jeito nenhum. Penso sempre no Show de Truman. Penso em ratinhos correndo na esteira, dentro de uma caixa de vidro. Acho feio.

A locação, uma belíssima mansão. Entre trocas de roupas e testes de luz, eu desfilava por ali, sem camisa, o peito peludo orvalhado de suor, os olhos fotofóbicos amparando-se sob os belos óculos escuros que ganhei da já citada playmate.

Cláudio era o típico modelo de terno. Aqueles caras grisalhos que fazem propaganda de bancos, de supermercados elegantes, de relógios. Aquele tipo de modelo que passa credibilidade.

Santista, ainda residindo em Santos, amigo do pessoal do Charlie Brown Jr. e companheiro no gosto pela fumaça. Começou na carreira aos 31 anos. Agora, aos 41, era um camarada forte, musculoso, branco, olhos claros, cabelos curtos, barba por fazer, uma espécie de versão bem-cuidada de mim mesmo, em um de meus possíveis futuros.

Não foi por força minha, mas, desde o primeiro instante, Cláudio fixou-se em mim e começou a contar sua vida inteira. Hoje, posso dizer que conheço (na pele) a rotina de um modelo profissional masculino. Vivi um pedacinho da experiência em tempo real, no mundo físico, enquanto ouvia sobre todo o resto. Uma espécie de curso intensivo.

Uma espécie de mini-vida, vivida em apenas um dia. Um presente divino, prefiro encarar assim. Cecilia Sereia como um instrumento. Como somos todos, aliás - podem me espancar, mas vou morrer dizendo isso: somos instrumentos. Uns mais afinados, outros um tanto menos.

Cheguei à mansão com alguns bons dedos de barba pendendo abaixo do queixo. Não era minha faceta mais profética, mas, eu sabia, era algo um pouco além do que costumo ver em catálogos de moda.

Não deu outra. Provei uma roupa, jogaram uma espécie de echarpe em cima de mim - eu era o modelo mais... oriental, vai - e decidiram que eu estava... oriental... demais.

Lá fomos nós ao banheiro, eu e a maquiadora. A isso, seguiu-se um doloroso processo com tesoura e mil pedidos de "desculpa, não se preocupe, só vou tirar um pouquinho, está tudo bem com você? Jura? Me desculpa?".

Fiz as fotos com barba de modelo. Aquele sutil desenho de pêlos que parece estar na moda. Parece que é a vingança das mulheres. Agora teremos todos de estar depilados como elas. Daqui a uns cinco anos, Vera Fischer e Cláudia Ohana serão encaradas como encaramos hoje os longos cabelos dos hippies. Dentro de alguns anos, pêlos serão peça de museu. Serão um verdadeiro manifesto.

Não sei sobre o resultado das fotos. Não sei se serei chamado novamente. Desta vez, consegui salvar a parte essencial da barba, a que mais demora para crescer. Mas e na próxima? Será que a vida vai me apresentar uma situação em que terei de optar entre vender ou não minha barba pelo preço de um cachê de modelo?

Será que Deus vai me fazer essa piada? Será que aquele trecho do meu mapa diz algo sobre barba? Justo a barba, algo que a vida me deu em relativa abundância?

Justo a barba, minha maior vaidade estética?

E se essa situação ocorrer, será uma piada ou um presente? Será que terei de vender a barba justo quando não tiver mais nada a vender e o aluguel estiver atrasadíssimo?

Pois é. Já cheguei a um ponto em que percebi haver uma lógica muito grande por trás de tudo. Assim como o tempo é apenas uma distância grande demais para ser vista a olho nu, creio que a compreensão sobre a lógica da vida dependa de você tê-la vivido primeiro.

Até aqui, sou uma espécie de criança curiosa, abrindo portas e olhando atentamente através da penumbra.

Terminadas as fotos, a dona da agência comentou: "ficaram ótimas. Parece que foram feitas... na Noruega".

Gabriela Kunoichi Chan Haru Takahashi já disse: "é, modelo, quem mandou nascer exótico?"

Não sei. Não me considero exótico. É só que resolvi pegar os acordes todos e encher de sextas e nonas. Reforçar a dissonância.

Aí, quando eu toco, o roquenrou realmente parece básico.

E olha que eu apenas toco. É neguim que compõe através de mim.

Ó, *, és infinitamente bondoso, generoso e misericordioso.

Melhor que Mozart.

Meu camarada Luther Blisset disse hoje com grande propriedade:

"A arte já não deve expressar as paixões do velho mundo, mas contribuir para inventar novas paixões: em vez de traduzir a vida, deve ampliá-la".

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